Pelo segundo ano consecutivo, comunidades indígenas do Acre são impactadas por grandes enchentes dos rios; intensificação da temporada seca também preocupa. Mudanças representam desafio na relação ancestral dos indígenas com os ciclos climáticos da região.
Rio Branco (AC) – As cheias na Amazônia Ocidental, comuns nesta época do ano, têm sido cada vez mais intensas e em intervalos reduzidos. No Acre, populações indígenas estão entre as mais afetadas. Em muitas situações, os indígenas nem bem se recuperaram dos efeitos da última cheia, e um novo transbordamento dos rios destrói todo o roçado e criações das aldeias. Em 2022, por exemplo, há relatos de aldeias terem sido atingidas por grandes cheias por mais de uma vez num intervalo de tempo inferior a 30 dias. Os impactos das enchentes extremas agravam ainda mais a situação de grupos vulneráveis, que desde 2020 estão entre os mais fragilizados pela pandemia da Covid-19.
É o que acontece atualmente com os Jaminawa do rio Purus e os Huni Kuin dos rios Jordão e Tarauacá, nos municípios acreanos de mesmo nome dos mananciais. Após já terem sido bastante impactados pelas cheias de um ano atrás, eles voltaram a ter suas aldeias inundadas entre fevereiro e março de 2022. O mesmo acontece com as aldeias Huni Kuin e Shanenawa espalhadas pelo baixo rio Envira, em Feijó. Os Yawanawa do rio Gregório, em Tarauacá, sofrem com o mesmo problema.
De acordo com dados da Defesa Civil Estadual, 1011 indígenas, em cinco diferentes municípios, foram atingidos pelas cheias dos rios em 2022. O município de Feijó foi o que registrou o maior número de impactados: 460 pessoas em 12 comunidades. Além dos Huni Kuin e Shanenawa, Feijó ainda é habitado pelos Ashaninka, Madijá (Kulina) e os recém-contatados Xinane – todos moradores das margens do rio Envira.
Até mesmo os indígenas moradores da capital Rio Branco são afetados. Ao menos 11 famílias Huni Kuin que moram em bairros da periferia foram impactados pela cheia do rio Acre. Suas casas ficam nas áreas mais baixas da cidade, mais vulneráveis à subida do nível do manancial. Todos os indígenas oram levados para uma escola pela Defesa Civil.
Considerada uma das populações mais vulneráveis do Acre por não disporem de territórios demarcados, os Jaminawa (também chamados de Yaminawa) do município de Sena Madureira enfrentam dificuldades. Pelo fato de suas casas dentro da cidade estarem próximas ao leito do rio Yaco, muitos foram levados para um abrigo mantido pela Defesa Civil.
As aldeias Sete Estrelas e Canaã estão entre as mais afetadas, com as áreas destinadas às plantações destruídas pelas águas do Purus, onde está localizada a maior parte dos Jaminawa. “O Purus é um rio baixo por natureza. Qualquer subida ele já alaga os roçados nas aldeias. Já sabendo disso, os parentes fazem suas casas nas partes mais altas, na terra firme. Mas quando a enchente é muito grande, nada escapa”, diz o cacique José Correia Tunumã, principal liderança Jaminawa no Acre.
“Na Sete Estrelas e na Canaã a água levou tudo. O pessoal teve que entrar em terra firme para escapar da enchente. Outros foram para uma aldeia vizinha, que é terra alta.”
Segundo a liderança, desde fevereiro os Jaminawa são afetados pela subida repentina das águas do Purus. “Mês passado ele deu uma subida e depois uma baixada. Aí, quando foi no começo deste mês, encheu de novo. Aí ele deu uma parada e agora voltou a subir aos poucos”, explica Tunumã. Segundo dados do Monitoramento Hidrometeorológico do governo do Acre, em Sena Madureira o rio Purus está em situação de alerta máximo, acima da cota de transbordamento.
“Nas aldeias a situação está muito precária. Ano passado a enchente foi muito grande, acabou com todo o nosso roçado, os legumes. A gente conseguiu umas cestas básicas com o pessoal da Funai, o pessoal da igreja e da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), que nos ajudou. Aí veio o verão, fizemos os roçados, as plantações, mas agora veio outra enchente e levou tudo de novo”, explica o cacique Jaminawa. De acordo com ele, ao menos 366 Jaminawa vivem nas aldeias do rio Purus, mas nem todas foram atingidas.
Conhecidos por sua dinâmica de mobilidade, os Jaminawa também se concentram na parte urbana de Sena Madureira, geralmente indo para os bairros mais baixos, nas periferias, suscetíveis a sofrer com as enchentes. Suas casas ficam nas partes mais baixas, próximas às encostas do rio Yaco, afluente do Purus. Em fevereiro de 2021, Sena Madureira teve quase 80% de seu perímetro urbano alagados pela cheia dos dois rios.
Para a antropóloga Fátima Ferreira, da Universidade Estadual de Santa Catarina (Udesc), que desde o início dos anos 2000 estuda os Jaminawa, as enchentes e secas extremas passaram a ser fatores a empurrar essa população para viver no perímetro urbano de Sena Madureira. Os Jaminawa dos rios Caeté e Yaco, afluentes do Purus, são os mais afetados. Eles são mananciais pequenos e que chegam a vazantes críticas durante os meses de estiagem na região, o verão amazônico.
Com os rios secos nesta época do ano – que varia de maio a fins de setembro – os Jaminawa ficam sem suas principais dietas alimentares, que são os peixes e o jacaré. O jacaré é o alimento preferido dos Jaminawa, seguido pelo mandi (peixe). A cada ano a oferta do pequeno peixe vem se reduzindo não só por conta de efeitos naturais, mas sobretudo pela pesca indiscriminada. O mandi também é o peixe favorito das comunidades ribeirinhas e urbanas localizadas ao longo do Purus e seus afluentes – tanto no Acre quanto no Amazonas.
“Por conta da seca no Caeté e das cheias no Purus, os Jaminawa não conseguem mais viver na aldeia. Não há mais subsistência. Aí eles vão para a cidade trabalhar como pedreiro, ajudante de pedreiro, limpar quintal”, diz Fátima. Segundo ela, a desativação do posto da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Sena Madureira também contribui para que os Jaminawa acabem passando mais tempo na cidade do que nas aldeias.
Com a completa ausência da Funai no município, os Jaminawa ficaram sem o apoio para obter combustível em suas viagens de volta às aldeias após terem ido à cidade para sacar seus benefícios sociais e realizar as compras do mês. “Os Jaminawa têm uma intensa mobilidade, no entanto eles não iam para a cidade para morar ou passar longo tempo”, analisa a antropóloga. “O fechamento do posto da Funai os deixou muito abandonados.”
A reportagem procurou a assessoria de imprensa da Funai para comentar a situação, mas o órgão não respondeu às perguntas enviadas.
A não demarcação de duas terras indígenas reivindicadas pelos Jaminawa em Sena Madureira é outro fator a deixar o povo numa situação ainda mais vulnerável e de insegurança. A espera de duas décadas pelo reconhecimento do território faz com que as áreas vizinhas às aldeias sejam invadidas pelos ribeirinhos vizinhos para ampliar seus roçados e pastagens, além da entrada de caçadores clandestinos – o que reduz a oferta de caça para os Jaminawa.
“A fauna nas áreas onde moram os Jaminawa mudou muito. Hoje, para caçar, é muito mais trabalhoso. Essa relação deles com a caça e a pesca mudou muito por conta da seca, da enchente, da extinção de animais nas terras Jaminawa”, diz Fátima Ferreira.
Outro efeito das mudanças climáticas nas comunidades indígenas são as alterações nas temperaturas, que estão cada vez mais elevadas nas épocas quentes e baixas nos dias de friagem que chegam ao Sul da Amazônia nos meses de junho e julho. No ambiente da floresta, a sensação térmica nos dias de frio é ainda mais baixa.
Além de colocar em risco a segurança alimentar e hídrica dos povos indígenas, os eventos climáticos extremos também causam sérios impactos na relação ancestral deles com a floresta. Se antes era possível ter uma certa previsibilidade sobre a ocorrência de inundações ou estiagem – com base apenas na observação e convívio com o ambiente – hoje está mais difícil, sobretudo para os mais velhos, saber como a natureza vai se comportar nos meses do verão e inverno amazônicos.
“Estes eventos não eram comuns com esta regularidade. Isso é muito complicado porque os indígenas nem estão sabendo como é que se comportam, pois como tem muita alteração dos ciclos naturais de chuva, então isso também está muito confuso pra eles”, diz a professora e indigenista Vera Olinda, coordenadora-executiva da Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre).
“Recebemos vários áudios [de lideranças] dizendo: meu Deus do céu, é a terceira vez que as casas ficam assim [inundadas] desde janeiro. Isso afeta o conhecimento tradicional, pois a experiência é a observação que rege a vida destes povos. Estas dinâmicas de chuva estão todas alteradas, então é bem importante fazer uma investigação séria da relação disso com as mudanças climáticas”, completa.
Para Vera Olinda, todas essas alterações vão obrigar os indígenas a buscar e a aprender uma nova organização de vida em sociedade. Na análise dela, as mudanças climáticas são um desafio não apenas para os indígenas, mas também para o indigenismo, que precisará colocar o tema em suas agendas. Na avaliação dela, a adaptação a essas alterações vai ser mais necessária do que a mitigação.
“Na Amazônia, a mitigação tinha muito mais importância até recentemente. Agora não. Pelo que a gente está vendo nestes dois últimos invernos amazônicos, a adaptação é uma coisa muito mais forte. Vai precisar estar muito preparado, enfrentar mesmo. Tem que fazer a adaptação”, define Vera Olinda.