A bióloga Milene Alves nunca vai esquecer o dia em que viu seu jatobazal preferido pela última vez, há quatro anos. Rodeado por pasto, aquele arvoredo de jatobazeiros era crucial para a Rede de Sementes do Xingu, uma organização formada por indígenas, agricultores familiares e comunidades urbanas nas bacias dos rios Xingu, Araguaia e Teles Pires, em Mato Grosso, com o objetivo de reflorestar áreas do Cerrado e da Amazônia. Desde 2007, Milene e mais de 700 coletores atuam na recuperação de áreas do Cerrado. Aos 26 anos, Milene é técnica da organização Redário, uma articulação que reúne 27 redes em 13 estados localizados na Mata Atlântica, Cerrado e Amazônia e é coletora nas horas vagas.
Ironicamente, a área com jatobazeiros que Milene citou foi totalmente destruída por um fazendeiro e se tornou pasto. Os coletores tinham um acordo verbal com o dono da área para a coleta de sementes. Com a derrubada, pouco pode ser feito, já que trata-se de propriedade privada. “Todo ano a gente tirava boa parte da nossa renda dali. Meus pais principalmente”, conta Milene, que é remunerada pelo trabalho como coletora na Rede de Sementes do Xingu. “Foi tão impactante. Quando chegamos lá estava tudo derrubado. Eles tinham acabado de passar com o correntão, havia várias árvores ainda soltando fumaça, pegando fogo”, lembra.
Em Nova Xavantina, a 556 quilômetros de Cuiabá (MT), a área era usada por trabalhadores como Milene para coletar sementes que, mais tarde, se tornaram “muvucas” – um conjunto colorido de sementes usado no reflorestamento de grandes áreas. As árvores de onde vêm as sementes são carinhosamente chamadas de matriz, pela alta produtividade de frutos e sementes. Mas a palavra matriz também é uma bonita coincidência com a formação da Rede de Sementes do Xingu, que conta com mais de 80% de mulheres em sua formação.
Milene e as demais coletoras da Rede vivem na prática as descobertas recentes de um estudo realizado por 35 cientistas do Brasil, Reino Unido, Argentina e Holanda. De acordo com as descobertas, publicadas no início de maio na revista Communications Biology (do portfólio da Nature), indicam que o Cerrado perdeu 24 bilhões de árvores desde 1985, o equivalente a três vezes a população humana da Terra.
Os cientistas descobriram que o bioma é muito sensível devido à hiperdominância: um fenômeno em que poucas espécies são mais presentes e, por isso, ecologicamente mais importantes para a preservação. Dados revelados pelos cientistas apontam que menos de 2% das árvores do Cerrado (30 espécies) correspondem à metade de todas as espécies do bioma.
O jatobá-do-cerrado (Hymenaea stigonocarpa), citado por Milene, está nessa lista, o que mostra a enorme importância do jatobazeiro destruído para dar lugar ao pasto. E é justamente a região onde está a Rede de Sementes do Xingu, a que concentra as maiores perdas de árvores do Cerrado, com 31,8% das perdas concentradas em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e no Distrito Federal. “Ficamos surpresos com esse nível de hiperdominância em um ecossistema tão diverso”, afirma o autor principal, Facundo Alvarez, da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat). “Entender a dominância dessas poucas espécies é essencial diante das perdas”, completa.
Com 2 milhões de quilômetros quadrados – área equivalente à da Inglaterra, França, Alemanha, Itália e Espanha juntas –, o Cerrado é a maior e mais diversa savana do mundo em espécies de plantas. Além disso, funciona como porta de entrada para a Amazônia e desempenha papel vital no fornecimento de água limpa e o sequestro de carbono.
A hiperdominância de algumas espécies, presentes tanto na Amazônia quanto no Cerrado, evidencia os riscos que ambos os biomas correm ao perder espécies devido ao desmatamento e às mudanças no uso da terra. “Quando tantos processos ecossistêmicos estão concentrados em cerca de 30 espécies, significa que, se esse sistema for interrompido, por exemplo, por meio de mudanças climáticas, dependendo de como essas espécies responderem a essa interrupção, haverá o risco de perda de espécies essenciais para manter a funcionalidade da savana”, explica o coautor do estudo Ted Feldpausch, da Universidade de Exeter, na Inglaterra.
Como apenas 30 espécies dominam o Cerrado, sua estabilidade e seu funcionamento são muito limitados. Mas Feldpausch explica que o foco nessas espécies pode ajudar os pesquisadores a entenderem como esse vasto ecossistema funciona. “Isso nos ajudará na conservação, ao sabermos onde há maior e menor diversidade. E ajuda no manejo, ao sabermos, por exemplo, quais espécies são mais ou menos adaptáveis ao fogo”, detalha Beatriz Marimon, da Unemat, e co-autora do estudo.
A importância das espécies utilizadas como matrizes e apontadas no estudo como hiperdominantes é tão grande que a Rede de Sementes do Xingu decidiu plantar suas próprias árvores para evitar o que aconteceu com o jatobazal destruído por fazendeiros. “A rede teve que escrever projetos e coletar recursos para trazer as árvores para perto dos coletores, para dentro das aldeias, dentro dos assentamentos e até dentro da cidade”, conta Milene. “Em Nova Xavantina, a gente tem uma praça onde investimos para fazer uma área de fonte de semente”, detalha a bióloga.
Plantar as próprias matrizes foi necessário porque coletores estavam tendo que ir cada vez mais longe em busca de espécies antes fáceis de encontrar. “Antes eu coletava aqui na cidade, a 20 ou a 10 quilômetros de distância de casa. Agora, tenho que percorrer até 80 quilômetros para encontrar determinada espécie para conseguir as sementes”, compra Milene.