Canção televisionada

25 de abril de 2025

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No Brasil do início da década de 1960, parte dos compositores de música popular formados na bossa nova começa a se afastar de temas como a praia e o barquinho, embalados ao som do violão, para mergulhar nas questões sociais e políticas que convulsionavam o País. Em 1961, o então presidente Jânio Quadros surpreende e renuncia ao mandato após poucos meses de governo.

Ao mesmo tempo que Tom Jobim e João Gilberto apresentavam ao mundo, no Carnegie Hall, em Nova York, nos Estados Unidos, a forma intimista de tocar e cantar samba, o Teatro de Arena, em São Paulo (SP), e o Centro de Cultura Popular (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), no Rio de Janeiro (RJ), divulgavam canções retratando o povo brasileiro em suas reivindicações, lutas e angústias cotidianas.

Carlos Lyra, Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo e Edu Lobo foram alguns dos bossa-novistas que despertaram paixões a partir de um evento inaugural que colocou os protestos na boca da multidão: o 1º Festival Nacional de Música Popular Brasileira, realizado em março e abril de 1965 pela TV Excelsior, pioneiro concurso musical do tipo a ser televisionado e difundido por todo o País.

Do palco para a tela

Ex-ator do Teatro de Arena, o coordenador de programação da Excelsior, Solano Ribeiro, cultivava a ideia de fazer uma versão brasileira do Festival de San Remo, que, em 1958, consagrara mundialmente a luminosa canção italiana Volare, oh, oh, na voz de Domenico Modugno. A diferença é que, na Itália, as editoras e gravadoras inscreviam as músicas, enquanto no Brasil, a iniciativa era dos compositores, muitos convidados diretamente por Ribeiro.

Das 1,29 mil canções inscritas, 36 foram selecionadas para concorrer em três eliminatórias: em Guarujá (SP); no auditório da emissora de tevê na Rua Nestor Pestana, região central de São Paulo; e no Hotel Quitandinha, em Petrópolis (RJ). O formato itinerante foi imposto pelo patrocinador, a multinacional francesa Rhodia, que usava shows musicais para a promoção dos seus produtos da linha têxtil. O júri, do mais alto nível, era composto pelo maestro Lyrio Panicalli; os críticos Lúcio Rangel e Nestor de Holanda; os jornalistas Sérgio Cabral, Franco Paulino, Lenita Figueiredo e Silvio Cardoso; e o produtor musical Aloysio de Oliveira.

A final ocorre no dia 6 de abril, no Teatro Astoria, no bairro carioca de Ipanema, que servia de auditório para a TV Excelsior na Cidade do Rio. Dentre os 12 finalistas, figuravam compositores estreantes como Edu Lobo, Baden Powell, Francis Hime e Chico Buarque de Holanda. O espetáculo, porém, estava focado nos intérpretes, alguns consagrados (como Cyro Monteiro e Elizeth Cardoso), outros buscando os holofotes, como aquela gaúcha baixinha, conhecida apenas pelos então frequentadores do Beco das Garrafas, em Copacabana.

Aquela noite, como se sabe, mudou a música popular brasileira. O primeiro lugar para Arrastão, obra-prima de Edu Lobo e Vinicius de Moraes, foi uma vitória que representou um divisor de águas, não apenas pela mistura inédita de regionalismo e protesto social — que dali em diante se ouviria muito —, mas, sobretudo, pela interpretação dramática de Elis Regina, a tal da gaúcha baixinha.

“Arrasta essa gente aí, Pimentinha”, pedia Vinicius à cantora de um metro e meio que, ao pisar no palco, “virava um gigante”, de acordo com a descrição de Zuza Homem de Mello, no livro A era dos festivais — uma parábola (Editora 34, 2010). “Valha-me, Deus, Nosso Senhor do Bonfim/Nunca, jamais se viu tanto peixe assim” — ao explodir o refrão final, com um movimento de braços que sugeria um pescador puxando a rede, Elis provocou tamanha ovação do público que selou, na hora, a votação quase unânime dos jurados (só um voto contra). Nascia ali a chamada música de festival, com as respectivas torcidas pelas canções preferidas que, a exemplo dos estádios de futebol, convulsionariam plateias em disputas épicas.

O êxito de público e de crítica do Festival da Excelsior coincidiu, paradoxalmente, com o início do fim da emissora, cuja concessão pertencia a Mário Wallace Simonsen, empresário nacionalista — dono também da companhia aérea brasileira Panair —, vinculado ao deposto governo de João Goulart e implacavelmente perseguido e levado à falência pelos militares alçados ao poder pelo golpe de 1964.

Novas edições

Dessa forma, o II Festival de Música Popular Brasileira, realizado em 1966, já teve organização da TV Record, responsável pelo auge dos eventos com esse formato. A disputa entre as duas canções finalistas — A Banda, de Chico Buarque, interpretada por Nara Leão, e Disparada, de Geraldo Vandré e Théo de Barros, na voz de Jair Rodrigues — adquire proporções de final de campeonato. A inclinação do júri era dar a vitória à música de estilo lírico narrativo que acaba por entrar para o repertório musical do mundo inteiro. No entanto, o próprio Chico, ao lado da maioria do público, não admite derrotar o vigoroso protesto da moda de viola que anunciava o “cavaleiro, laço firme, braço forte, de um reino que não tem rei”. A direção da emissora, então, entra em campo, desconsiderando os votos nunca contados ou revelados e decretando a vitória conjunta de ambas as canções.

O Festival de 1967 é reconhecido como o mais marcante de todos, pela qualidade das músicas apresentadas e por ter sido a plataforma de lançamento do tropicalismo, com Alegria, alegria, de Caetano Veloso, e Domingo no parque, de Gilberto Gil, canções que popularizaram a guitarra elétrica na música nacional. Numa disputa marcada ainda pelo episódio em que Sérgio Ricardo quebra o  violão e atira o instrumento contra a plateia — em resposta às vaias que recebeu —, a vencedora é Ponteio, de Edu Lobo e Capinam. Destaque também para Roda viva, de Chico, interpretada pelo conjunto vocal MPB4.

Na edição de 1968 daquele que se torna o Festival Internacional da Canção, a cargo da TV Globo, a belíssima composição vencedora, Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque, é vaiada no Maracanzinho lotado, que acaba se empolgando com a letra revolucionária de Caminhando, de Geraldo Vandré. O próprio autor dos versos “quem sabe faz a hora, não espera acontecer” tenta acalmar o público. “A vida não se resume a festivais”, afirma Vandré, conclamando a continuidade da rebeldia por outros meios, antes que a pesada noite do AI-5 chegasse com a mordaça da censura, banindo a liberdade de expressão e a criatividade que moldaram a era dos festivais.

Herbert Carvalho Annima de Mattos
Herbert Carvalho Annima de Mattos