Nem tanto ao mar, nem tanto à terra

11 de dezembro de 2023

O Estado é uma entidade coercitiva que garante, tanto pela lei quanto pela força, a segurança e a liberdade de cada um. O argumento, do filósofo e teórico político Thomas Hobbes, embasou a sua obra Leviatã, publicada no século 17, na Inglaterra. Na capa, a seguinte imagem: atrás das montanhas, um imenso soberano com uma coroa na cabeça segura uma espada em uma mão e um candelabro na outra, enquanto o corpo é, na verdade, a união de vários corpos.

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Diferentes monstros mitológicos devem ter cruzado as leituras de Hobbes até que ele se convencesse de que o Leviatã — uma gigante criatura marinha citada marginalmente em passagens do Velho Testamento bíblico — seria a imagem definitiva para ilustrar a própria teoria.

A mensagem é evidente: o Estado é a síntese da sociedade. Apenas estudiosos notaram até hoje que o Leviatã hobbesiano só existe, na verdade, em relação a outro monstro bíblico: Behemoth, uma espécie de governador terreno que instaura o caos, suspende as leis, define os conflitos, naturaliza as relações e, por isso mesmo, só pode ser o avesso da criatura do mar: é justamente um não Estado. Hobbes o usou para metaforizar, inclusive, a violenta guerra civil inglesa daquele mesmo século. Mas, afinal, o que é o Estado? Como deve funcionar? Qual é seu tamanho ideal? Quais são os seus limites? Entre Leviatã e Behemoth, há uma miríade de experiências reais que alteram os pontos de vista.

No Brasil, às portas de 2024, os dois monstros parecem se fundir. “Não é nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, define Paulo Hartung, ex-governador do Espírito Santo, mantendo a metáfora hobbesiana. Autor de Brasil: desafios e propósitos, de 2021, ele é figura conhecida no debate público por defender reformas. Atualmente, preside a Indústria Brasileira de Árvores (Ibá) desde que deixou o governo capixaba no fim de 2018. “Na verdade, ainda precisamos amadurecer muito para poder fazer esse debate. Há um lado extremamente liberal que diz que ‘quanto menor o Estado, melhor’. O outro lado, porém, acha que só o Estado é capaz de efetuar as mudanças socioeconômicas relevantes do País”, continua ele.

“Nem Leviatã, nem Behemoth: a busca é pelo equilíbrio possível entre eles”, avalia Antônio Lanzana, copresidente do Conselho de Economia Empresarial e Política da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP) e professor aposentado na Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP), seguindo na linguagem do filósofo britânico. “Tem de ter Estado para controlar a moeda, fazer as legislações, representar o Brasil no exterior, entre muitas outras coisas. O ponto está em enxugá-lo, abrir espaço para o setor privado, mudar a rota de crescimento medíocre que o País registra desde os anos 1980”, completa. A Reforma do Estado brasileiro, que sempre esteve na agenda da FecomercioSP, ganhou novo vigor depois que a longa discussão sobre mudanças na legislação tributária não cumpriu o objetivo primordial de simplificar e equilibrar o arcabouço da arrecadação fiscal nacional.

Em um desses encontros realizados em novembro, na Câmara dos Deputados, Lanzana apresentou uma espinha dorsal dessa agenda reformista. São oito eixos temáticos relacionados que vão desde a desburocratização de procedimentos estatais até as mudanças na legislação previdenciária [veja na página 18]. As reflexões do professor convergem para a constatação de que o Brasil está estagnado no mundo justamente porque o Estado é mais Leviatã do que deveria. “Isso acontece por dois motivos: o primeiro é que atua em campos onde não precisava — e em que a iniciativa privada seria certamente mais eficiente. O segundo se relaciona com o primeiro, na medida em que o Estado não tem eficiência mesmo nessas áreas, porque não trabalha com indicadores de desempenho”, explica. “Isso se agrava pelo péssimo uso do dinheiro público”, completa o economista, antes de emendar uma sequência de dados acerca da performance econômica brasileira, já adentrando, com ares de desaprovação, nos rumos da Reforma Tributária: nos últimos dez anos, por exemplo, o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil cresceu 5,4%, enquanto o dos países emergentes — México ou África do Sul, por exemplo, avançaram 52% no mesmo período — e o do mundo, como um todo, 33,8%.

A diferença chega a ser ainda mais gritante de 1980 até 2022: o PIB global ficou 324% maior, enquanto o dos países emergentes cresceu 561%. Nesse mesmo intervalo, entre duas graves crises econômicas, quedas de produtividade e envolto em suas várias contradições socioeconômicas, o Brasil cresceu 139%. “O que significa dizer que estamos ficando relativamente mais pobres, e isso por causa do peso do Estado”, sentencia Lanzana.

Números alarmantes

Em 2019, no último ranking sobre competitividade das economias, produzido pelo Fórum Mundial, o País ocupava a 71ª colocação, empatado em pontuação com a Jordânia, no Oriente Médio, e com a Sérvia, na Europa. Os critérios englobam principalmente os entraves burocráticos na hora de fazer negócios. Já na lista anual do Instituto Internacional de Desenvolvimento Gerencial (IMD, na sigla em inglês), sediado na Suíça, o Brasil estava na 60ª posição na edição de 2022, entre a Botsuana e a África do Sul. A entidade analisa 64 países todos os anos. O critério mais negativo para esse resultado foi o de “eficiência governamental”, no qual o Brasil ocupou o antepenúltimo lugar entre todos os países analisados.

Hartung, observa o funcionamento interno da máquina pública como efeito dos vícios típicos nacionais. “O Estado tem de ser mais organizado, ter clareza para cumprir as tarefas, assim como a sociedade depende de empreendedores com condições de criar atividades econômicas e tocar os processos adiante. Temos o pior possível: um Estado muito grande com uma quantidade absurda de carreiras e funcionários sendo automaticamente promovidos e sem avaliação de desempenho. É tudo o que não o induz a ser um bom provedor de serviços públicos”, ressalta. O Brasil não conta, hoje, com critérios gerais de promoção de servidores, o que permite que cada organização pública defina os próprios parâmetros.

Há alguns anos, uma pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI) mostrou que o Brasil gasta quase 14% do PIB com funcionários públicos, incluindo as três instâncias governamentais. É o sexto país que mais despende recursos para a burocracia no mundo, segundo dados do Fundo Monetário Internacional (FMI). “É por isso que a avaliação de desempenho dos servidores é a chave”, defende Hartung. “É só comparar o setor público e o ambiente empresarial no Brasil. Como uma empresa promove um profissional, hoje? Como se estabelece a remuneração? Depende do desempenho. No Estado, um funcionário acomodado é promovido da mesma forma que a pessoa que trabalha bastante para conseguir crescer na carreira. Isso não injeta produtividade na máquina pública”, explana.

Evelyn Levy, consultora de gestão de pessoas do Banco Mundial e com passagens por secretarias em âmbitos federal e estadual, concorda. Assim como Hartung, ela entende que a gestão das entregas dos servidores é o ponto mais urgente que uma possível reforma deveria procurar resolver. “Significa dizer para eles o que nós queremos que eles façam e verificar se estão, de fato, fazendo — e, caso não estejam, se estão suficientemente capacitados para exercer aquela função. A própria ideia de carreira ainda é muito fragmentada no Brasil, porque o ideal é a transversalidade, no sentido de um servidor poder trabalhar em vários setores em que isso signifique queda do seu desempenho”, explica.

De acordo com a CNI, um em cada dez trabalhadores formais brasileiros (12,5%) estão lotados em funções públicas, quase todas estáveis, uma proporção menor do que a dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que é de 21%, e parecida à média latino-americana (11,9%). Cerca de 10% do funcionalismo público nacional estão lotados em instituições federais. “O tempo tornou [esse dispositivo] anacrônico”, determina Hartung. “O debate, na verdade, é sobre quem deve ser estável e quem não deve”, diz Evelyn, lembrando do escopo da Reforma Gerencial, elaborada pelo economista e então ministro de Administração Federal, Luiz Carlos Bresser-Pereira, em 1995, que definiu diferentes núcleos de atuação do Poder Público e, dentro dessa estrutura, quais eram legalmente estáveis.

A ÍNTEGRA DESTE CONTEÚDO FAZ PARTE DA EDIÇÃO #478 IMPRESSA DA REVISTA PB. PARA CONTINUAR LENDO, ACESSE A VERSÃO DIGITAL, DISPONÍVEL NAS PLATAFORMAS BANCAH E REVISTARIAS.

Vinícius Mendes JOÉLSON BUGGILLA
Vinícius Mendes JOÉLSON BUGGILLA