Como se comportará o próximo Congresso? Se a resposta a esta pergunta depender do resultado do segundo turno da eleição presidencial, muitas conclusões já podem ser tiradas a partir do rearranjo que a votação proporcional promoveu nas duas casas legislativas do País
Um parlamento mais conflituoso. É como enxerga o cientista político Humberto Dantas, coordenador da pós-graduação em Ciência Política da Fundação Escola de Sociologia e Ciência Política de São Paulo (FESPSP) e colunista da Problemas Brasileiros. Na perspectiva dele, as urnas refletiram significativamente tanto a tendência à direita da população como as facetas de uma polarização social que tem se acentuado desde 2013.
Assim, se, de um lado, as esquerdas conseguiram ampliar as representações das bandeiras que encampam – como a eleição da maior bancada indígena da história da Câmara e de duas mulheres trans – de outro, a maioria dos candidatos mais bem votados do País vieram da onda direitista atual, como é o caso do mineiro Nikolas Ferreira (PL), escolhido por 1,47 milhão de eleitores em Minas Gerais.
“Não houve uma tendência de centralização, mas, ao contrário, de abertura da lógica das diversidades. Isso vai gerar mais conflitos no Congresso e, ao mesmo tempo, representa melhor a sociedade em suas diferenças”, argumenta Dantas. “Se essa polarização se tornou mais intensa de 2018 para cá, é interessante observar como nosso sistema proporcional também permite a chance de mandato a pequenos grupos sociais capazes de criar narrativas individuais”, completa.
O que chama mais a atenção de Graziella Testa, professora da Escola de Políticas Públicas e Governo da Fundação Getulio Vargas (FGV-EPPG) e colunista da PB, é a nova distribuição de poder entre as siglas na Câmara – efeito da Reforma Política implementada na metade de 2017. Ela nota a queda do número de partidos tanto no sentido absoluto (eram 30, após o pleito de 2018, e são 19 agora) quanto no efetivo, ou seja, daqueles que, pelo número de parlamentares, têm condições de impor ou barrar projetos de lei. São os casos do PL; da coligação PT, PCdoB e PV; do PP; e do União Brasil. Da mesma forma, a cláusula de barreira diminuiu a quantidade de partidos que podem acessar os recursos do fundo eleitoral a partir do ano que vem.
“São números que nos aproximam do que era a Câmara em 2006, quando a governabilidade era tida como mais fácil para o Executivo. Assim, a despeito das clivagens ideológicas, o sistema ficará menos fragmentado”, explica Graziella.
No Senado, a professora observa que as urnas consolidaram de vez o argumento de muitos cientistas políticos de que o cargo de ministro, no modelo brasileiro, é mais político do que técnico. “Muitos eleitos agora e que chefiaram pastas durante o governo do presidente Jair Bolsonaro se diziam ocupar estas funções por escolha técnica – e, olhe só, agora são políticos eleitos”, diz.
A conclusão de que o próximo Congresso será ainda mais à direita do que a composição que chegou a Brasília em fevereiro de 2019, reflete, na avaliação de Dantas, o eleitorado brasileiro de hoje. “Ele é muito mais conservador, afeito a valores e tem alguns medos que, à luz de uma racionalidade, são estranhos, como temer o comunismo, mas racionalizáveis à medida que se transformam em votos.” Do ponto de vista institucional, esta faceta significa mudanças importantes no jogo entre os poderes, dependendo, claro, do resultado das urnas no fim do mês. A principal delas é que, caso Bolsonaro seja reeleito, encontrará um Legislativo ainda mais alinhado às suas ideias do que no próprio governo que se encerra – o que pode ser o primeiro grande desafio de um eventual mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Isso é mais evidente no Senado, em que 20 das 27 vagas que estavam em disputa serão preenchidas por apoiadores do atual presidente. Na Câmara, Bolsonaro também terá uma bancada governista ainda mais robusta se vencer a eleição – principalmente porque o Partido Liberal (PL) conquistou, sozinho, 19% das cadeiras: são 99 deputados, 23 a mais do que a legislatura atual.
De fato, considerando possíveis coalizões de agora em diante, o bolsonarismo tem boas chances de se tornar uma força legislativa ainda maior, já que o PP, muito ligado ao presidente, saiu das urnas com 47 congressistas, enquanto o Republicanos, também alinhado a ele, conseguiu eleger outros 41. Juntos, somam uma base fortíssima de 187 deputados – ou pouco mais de um terço (36%) da Câmara. Um provável acordo do PP com o União Brasil, que terá 59 cadeiras na Casa, pode elevar a porcentagem para 48%, no que seria uma das institucionalidades mais favoráveis a um presidente desde a instauração da Nova República.
Se a formação da Câmara é um quebra-cabeça para um eventual governo Lula – cuja coligação (PT, PCdoB e PV) formará a segunda maior bancada, com 80 deputados – no Senado, o candidato petista certamente encontrará muita resistência se voltar a ocupar o cargo. Dos 21 candidatos que Bolsonaro apoiou formalmente para a Casa, 15 foram eleitos. Lula apadrinhou 27, mas só conseguiu levar 8 para Brasília.
Graziella Testa, no entanto, não acredita que Lula teria dificuldades relevantes em montar coalizões no Congresso. “Elas podem ser costuradas menos sob a lógica ideológica e mais pela capacidade de cada parlamentar de levar recursos para seus redutos eleitorais”, argumenta. Entretanto, surge, então, outro problema: a continuidade (ou não) do orçamento secreto, ferramenta institucional erguida durante o governo Bolsonaro para abrir caminho à agenda do presidente no Legislativo. “Interromper o uso destes recursos, agora, seria difícil, e mesmo o Judiciário só compraria esta briga de alguma forma com a aceitação do presidente eleito. É um cenário complexo.” A cientista política ainda aponta outro fenômeno que ganhará força no parlamento com o reforço à direita vindo das urnas: o avanço das chamadas “pautas de costumes”. Na opinião dela, apesar de o Congresso não ter caminhado tanto para algum dos lados do espectro ideológico, boa parte dos deputados direitistas que ocuparão as cadeiras a partir de fevereiro está ainda mais à direita do que aqueles que de saída. “Vai depender muito de quem será o presidente e de como ele construirá sua coalizão, mas estes novos parlamentares dão mais centralidade a questões como a restrição ao aborto e a legalização de armas, por exemplo”, comenta.
Se esta é uma verdade irredutível, Michelle Fernandez, do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), sublinha que as esquerdas também podem pautar as bancadas temáticas: “Elas conseguiram levar parcelas importantes da população que não estavam representadas até agora – e que vão levantar novos temas para discussão.”
O Senado vai assistir, a partir de janeiro, a um fluxo intenso de chegadas e partidas. Das 27 vagas que foram às eleições no começo do mês, 22 delas terão novos nomes – um índice de “renovação” de 81%. Isso, porque a maioria dos senadores eleitos já se sentou nas cadeiras da Casa em mandatos anteriores. Na verdade, considerando apenas eleitos pela primeira vez entre as posições abertas neste pleito, a renovação (sem aspas) foi de 26%.
Os sete novatos também têm um lado muito definido: o de Bolsonaro. Tereza Cristina, eleita pelo PP do Mato Grosso do Sul, foi ministra da Agricultura do atual governo, por exemplo. Rogério Marinho, do PL do Rio Grande do Norte, chefiou a pasta de Desenvolvimento Regional no mandato do atual presidente. Em Santa Catarina, Jorge Seif (PL) – que ocupou a Secretaria da Pesca de Bolsonaro – foi eleito com quase 40% dos votos.
O Senado brasileiro tem 81 cadeiras – das quais apenas um terço foi às eleições deste ano. Uma bancada maior na Casa amplia, em um eventual segundo mandato de Bolsonaro, a narrativa contra ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), na medida em que apenas senadores podem aprovar pedidos de abertura de impeachment dos membros da Corte por supostos crimes de responsabilidade. Pela Constituição, o processo só pode ser aberto com os votos de 41 desses parlamentares.
Na Câmara – que, ao contrário do Senado, foi colocada inteiramente na disputa eleitoral –, a taxa de renovação foi de 45,7%, considerando os 227 deputados eleitos que jamais pisaram na Casa como representantes titulares. Um número ínfimo de congressistas conseguiu voltar ao parlamento (17), enquanto a maioria se reelegeu: 286 nomes – ou 64% de índice de reeleição. Os dados são do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap).
Segundo Michelle, da UnB, a recomposição da Câmara expressa, de algum modo, as transformações das demandas da sociedade. “Apesar da votação expressiva de candidatos aliados ao bolsonarismo, as bancadas temáticas terão novidades importantes”, destaca. “Será a primeira vez que a Casa terá pessoas trans como representantes – Erika Hilton (Psol/SP) e Duda Salabert (PDT/MG) –, além de mais deputados pretos e indígenas.”
Para além de rostos novos, há uma lista de 17 candidatos eleitos que já ocuparam cadeiras em magistraturas passadas, segundo a Secretaria-Geral da Mesa (SGM), da Câmara, dentre eles, Roseana Sarney (MDB/MA), ex-governadora do Maranhão; Mendonça Filho (União Brasil/PE), ex-ministro da Educação; e o ex-senador Lindbergh Farias (PT/RJ).
Outra conclusão já comum entre os analistas é que o que se convencionou chamar de “Centrão” deve ficar mais robusto. Este grupo difuso, que tende a votar de forma mais pragmática do que ideológica, cresceu não apenas por causa do desempenho nas urnas, mas principalmente pelas coalizões que devem ser feitas daqui para a frente. A fusão do PP com a União Brasil, se acontecer, será a materialização inequívoca disso.
Já a relação do Centrão com o próximo presidente ainda é uma incógnita – independentemente de ser Lula ou Bolsonaro. Embora tenha criticado o orçamento secreto durante a campanha, o candidato petista já admitiu que não há como governar sem os congressistas. É o mesmo argumento utilizado pelo atual chefe do Executivo.
Na análise de Dantas, as coisas tendem a mudar de figura apenas se o PT ganhar a eleição: “Se der Bolsonaro, o Centrão estará no poder com um presidente que assume publicamente fazer parte dele. Se Lula voltar, no entanto, a oposição no parlamento será forte, mas muita gente eleita nessa onda bolsonarista virará de lado rapidamente em troca de recursos. Em suma, é mais fácil o Lula conquistar deputados do PL para seu governo do que Bolsonaro atrair alguém do PT. Contudo, é certo que esse Congresso imporia a Lula a obrigação de ser um governo de centro, enquanto Bolsonaro já tem esse governo montado”, diagnostica.
Graziella Testa, da FGV, destaca que, por ser um comportamento, e não um grupo, é difícil fazer apontamentos mais precisos sobre o Centrão. Ela usa o exemplo do próprio PL, que, até a atual magistratura, se comportava nesta lógica, mas que terá uma face mais bolsonarista a partir de 2023. De qualquer forma, tanto Lula quanto Bolsonaro não conseguirão escapar desta relação. “São parlamentares sempre necessários na construção de uma coalizão. O ideal era que houvesse um ‘agregador de preferências’, para a governabilidade não ficar muito cara – que, no nosso sistema, seriam os partidos”, finaliza.