Da desigualdade

18 de setembro de 2020

Desde sempre, existem dois problemas socioeconômicos básicos essenciais: o problema da riqueza (ou melhor, da necessidade, o seu oposto), de sua criação e o problema da distribuição da riqueza (ou das carências). Criação e distribuição. Sociedades ditas “primitivas”, em seus vários estágios, praticamente não tratam da segunda questão. São, nesse sentido restrito, “comunistas”: o que é meu, é nosso; e o que é nosso, é nosso. Tudo é, de certo modo, comum. A irrupção da propriedade é que confunde tudo. O que é meu, é meu – e, por favor, tire a mão daí. As sociedades sem Estado não têm esse problema. Todas as outras têm o Estado (e o Direito, o seu filho dileto)

E

Em todos os casos, distribuir passa a ser o problema central, pelo qual vale a pena morrer (que o digam os irmãos Graco). O capitalismo não é diferente. Há riqueza, nunca houve tanta, mas há os poucos que a detêm e há os muitos que não. Essa contradição está na raiz das revoluções. O mais recente “futuro clássico” do economista francês Thomas Piketty trata, no fundo, da análise dessa distribuição desigual (num mundo que corre o risco de ser destruído, exaurido, pelo excesso de… “Criação de riqueza”). As sociedades desigualitárias são o seu foco de atenção, a “análise dos regimes desigualitários modernos”. O mundo, afinal. E Piketty é ambicioso, como já o fora na opera primeira: O Capital no século XXI. De novo, serão mais de mil páginas, centenas de gráficos e dezenas de tabelas para avançar nessa análise (ele se diz modesto, por causa, sempre, da falta de material “primário”).

Karl Marx morreu em 1883, dezesseis anos depois de publicar Das Kapital (O Capital, que Marx só viu impresso o primeiro volume; o resto da obra foi publicado pelo seu grande amigo, Friedrich Engels, a partir de manuscritos… De Marx). Desde então, o mundo (ao menos o mundo dos economistas, dos cientistas políticos, dos intelectuais e dos professores universitários latino-americanos) se divide em dois grandes grupos: o bloco de quem odeia Marx e o bloco de quem não odeia Marx. Thomas Piketty é do segundo grupo. Sem dúvida, ele não odeia Marx. Mas, ao contrário de muitos, leu Marx.

Leu e pensou (muito) a respeito. Um jovem e brilhante aluno de uma universidade de elite francesa, Piketty se tornou um jovem e brilhante economista e um jovem e brilhante professor. Finalmente, ele virou o que é hoje: um jovem (tem 49 anos, idade na qual, hoje em dia, um homem ainda é jovem) brilhante (sobre isso, não há dúvida) autor, famoso mundialmente. Um analista radical (no sentido de quem vai às raízes) do modo de produção capitalista na sua forma atual – a única que nos restou depois da debacle soviética e da transformação da China em uma superpotência… Capitalista: o capitalismo tecnológico da web, da Internet das Coisas, da Indústria 4.0, da hiperglobalização; do Facebook, da Tesla, da Amazon e do Google; de Zuckerberg e de Bezos (o homem de US$ 200 bilhões), de Musk e de Mao. É esse sistema e esse mundo que estão na mira de Piketty.

Piketty ficou (muito) famoso em 2013, quando escreveu o próprio Kapital. O Capital no século XXI, vendeu, apesar de suas mil e poucas páginas, mais de 2,5 milhões de exemplares. Quantos o leram, é difícil saber, já que é raro encontrar quem se atreva a ler um calhamaço daqueles. Pena, porque o livro é bem escrito, e as suas teses são sempre muito fundamentadas.

O capitalismo do século 21 consegue ser vitorioso, apesar de ter criado um mundo desigualíssimo, com uma riqueza tão mal distribuída quanto era mal distribuída a riqueza na Belle Époque (que só era bela para quem tinha dinheiro, e olhe lá – o resto vivia bastante mal e porcamente). Duas guerras mundiais depois, uma revolução bolchevique depois, uma Queda do Muro depois, é pior. E vai piorar. O tempo da pauperização progressiva veio para ficar, aparentemente. O 1% mais rico do mundo, hoje, tem tanta riqueza quanto os 50% mais pobres. Milhares são mais ricos do que bilhões. Este processo de desigualdade progressiva tem se incrementado rapidamente nos últimos 30 anos, e ainda mais rapidamente nos últimos 12 anos. Haja ideologia para justificar que um homem possa deter tanta riqueza quanto centenas de milhões; que, nos países ricos, 0,1% dos nascituros morreu antes de fazer 1 ano, enquanto nos países pobres da África, esse porcentual sobe para 10% (cem vezes mais). Para reduzir isso, defendeu o autor francês, é preciso taxar mais os ricos e os super-ricos. Tese antiga, diga-se, e aparentemente mais palatável para os que têm do que a alternativa violenta das revoluções.

O bolo cresceu, é vero, mas quem está em cima dele, cresceu bem mais do que quem está embaixo, para quem, desde sempre, sobram as migalhas. Margareth Thatcher, uma das “ídolas” do capitalismo triunfante, a mulher que destruiu o trabalhismo histórico britânico, tem um discurso famoso no Parlamento Inglês, no qual ela ridiculariza um deputado trabalhista, dizendo que, afinal, ele e seus colegas queriam que os ingleses empobrecessem, para que a desigualdade pudesse diminuir. Ela defendia que, enquanto o “bolo crescesse”, seria bom para todo mundo (no discurso, a Dama de Ferro faz uma encenação com as mãos, que destrói o oponente – ela era muito boa nisso). Pena que não seja bem assim.

De fato, no mundo do século 21 (este no qual o destino nos fez viver, afinal), a riqueza total é muito maior do que antes. Só na China, 850 milhões de seres humanos deixaram a miséria para trás nos últimos 42 anos (Mao teve de morrer para isso acontecer). O problema, como nos mostra Piketty em seu livro (de 2013), é que a desregulamentação sem freios, a globalização na sua forma moderna, o recuo do Estado e o endeusamento do capital (e dos capitalistas, diga-se de passagem), acabou jogando muita gente no fundo do poço, nas favelas de São Paulo ou Mumbai, da Guatemala ou do Cairo. Pode até ser que o número de miseráveis tenha diminuído, mas se levarmos em conta o padrão médio das sociedades, há mais gente vivendo pior.

Além disso, ao aumentar a desigualdade, o sistema arrasta consigo a democracia. Um mundo hiperdesigual é um mundo pouco democrático. No livro anterior, Piketty nos mostra, com análises e gráficos, que países desigualitários têm uma irrecorrível tendência ao autoritarismo, em suas várias formas (não se deve pensar no território em que vivemos, já que o Brasil não é analisado na obra mais recente). Se a taxa de acumulação de capital for maior do que a taxa de crescimento econômico, a médio prazo, a “vaca vai toda para o brejo”. Piketty demonstra isso, com números e com muitos dados, gráficos e tabelas.

Nesta segunda obra, Capital e ideologia (1.053 páginas, divididas em 17 capítulos e ilustradas com 148 gráficos e 10 tabelas), lançado no fim de 2019, na França, e publicado em julho no Brasil, a desigualdade incrementada é um dado – o ponto agora é explicar como. Como chegamos a isso, a um mundo onde 2.153 seres humanos têm mais riqueza que 4,6 bilhões? Ideologia. “Ideologia” é a palavra-chave. Piketty a estuda em profundidade – das sociedades ternárias tradicionais, passando pelas escravocratas e colonialistas, até hoje.

Todo sistema precisa se justificar. Sociedades que não se justificam tendem a desaparecer. A justificativa número 1 do hipercapitalismo é o mérito. Gente inteligente e com força de vontade, movida por uma ideia, mas sem muito dinheiro, gente assim sai de uma garagem e acaba movendo o mundo. O mérito justifica tudo. Afinal, se ricos, remediados e pobres tiverem as mesmas chances, os melhores vão se sobressair, e todo mundo sai ganhando. A ambição dos melhores move o mundo.

Saiba mais: “Capital e Ideologia”, de Thomas Piketti, Editora Intrínseca

Não é bem assim, diz Piketty. A injustiça está na raiz do processo todo. “As desigualdades ligadas a diferentes origens (…) ainda cumprem um papel central na desigualdade moderna”. Nossa igualdade é um “conto de fadas meritocrático”, cuja compreensão passa pela análise das sociedades tradicionais e pela influência, seja nos sistemas educacionais, seja nos processos regulatórios que só a história explica. As garagens não são apenas e tão somente garagens, mas oportunidades e network em uma escala única. Sem essa rede de apoio, haja garagem. Nos Estados Unidos, os mais ricos mandam sempre os filhos à universidade (90% das vezes), mas os mais pobres, não (só 30%).

E haja história. Piketty trata do mundo (com mais abrangência até do que na obra de 2013, explicada, segundo ele, pelo acesso a mais fontes). O economista é declaradamente otimista, mas é mais difícil sê-lo hoje do que há 40 anos, ainda mais quando há acesso aos dados e à dureza dos gráficos. É verdade que a humanidade vive mais, é mais rica, mais alfabetizada, tudo isso é verdade, mas parece ser insuficiente – ainda mais em um mundo partido pela pandemia. Recuperar esse otimismo parece ser o móvel do autor. Precisamos cada vez mais disso.

Marco Chiaretti Paula Seco
Marco Chiaretti Paula Seco