Aplicada em mais de cem países, a Convenção de Haia obriga que crianças levadas por um dos pais para o exterior retornem ao país de origem. Na prática, transforma em sequestradoras mães que fogem para proteger os filhos da violência.
“Eu tenho medo e nojo desses dois: meu pai e Nicole [madrasta]. Não quero ficar aqui, mas também não quero ir para uma casa de adolescentes [instituição de acolhimento]. Quero ficar com minha mãe até o fim do processo. Essa casa é um inferno! Uma prisão! (…) Escrevo essa carta como última opção de ter minha vida de volta e conseguir seguir em frente, porque nesse lugar não tenho razão de viver.”
A carta de Moara Luna Heiniger, 15 anos, foi entregue, no ano passado, à Justiça suíça, onde mora com o pai, o suíço Bernhard Heiniger. Ela só pode ver a mãe, a brasileira Neide da Silva, às terças e em sábados alternados, por poucas horas — de duas a oito horas. Durante a semana, as visitas são monitoradas por um oficial de Justiça.
A história dessa família virou uma batalha judicial marcada por reviravoltas, dor e acusações gravíssimas desde a separação do casal, em 2015. Ainda antes do anúncio do divórcio, o genitor sumiu com Moara por dois meses. No reencontro, Neide conta que a filha “estava com pneumonia grave e as partes íntimas machucadas, indicando violência sexual”, crime do qual Neide alega também ser vítima do ex-marido. Ainda assim, a Justiça suíça concedeu a guarda ao pai.
Neide reverteu a decisão. Moara passou a morar com ela e a visitar o pai aos fins de semana. “Sempre que voltava, ela estava com hematomas, principalmente nas pernas, e com as partes íntimas machucadas. Quando Moara tinha entre cinco e seis anos, passou a se recusar a ir para a casa do genitor, chorava desesperadamente, eu precisava conversar muito para convencê-la a ir”, lembra Neide. Apesar dos traumas evidentes vivenciados pela garota, em 2017, uma nova decisão determinou a guarda para o pai — Neide tem dificuldades financeiras e o ex-marido alega ter mais condições para criar e educar a garota.
Em 2018, Neide e a filha viajaram para São Luís, no Maranhão. Era a primeira vez da garota com a família materna e no país de origem da mãe. Cansada dos maus tratos, Neide tomou uma decisão: não retornaria à Suíça. É nesse contexto que entra a Convenção de Haia, tratado internacional que rege disputas como essa.
Nos anos 1970, com a legalização do divórcio em vários países, surgiram debates sobre a guarda dos filhos em casos de casamentos binacionais. Na época, muitos pais fugiam para outros países em busca de decisões judiciais mais favoráveis. Assim, 103 países (como o Brasil) assinaram, em 1980, a Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, incluída na Convenção de Haia. Na prática, quando um dos responsáveis leva uma criança para o exterior sem a autorização do outro genitor, deve retornar ao país onde vivia antes, a chamada residência habitual. É lá que a Justiça vai decidir quem fica com a guarda da criança.
“A Convenção surgiu para regular a questão da competência, com o objetivo de determinar que o tribunal competente para decidir a guarda seja aquele com mais conexão com a criança”, explica a advogada Janaína Albuquerque, especialista em Direito Internacional da Família e coordenadora jurídica da Revibra Europa, rede europeia de apoio às vítimas brasileiras de violência doméstica e de gênero. “A Convenção não fala sobre guarda, mas a pretensão era resolver situações relacionadas a isso”, completa. Janaína acrescenta, que, com o tempo, surgiram novas questões que envolvem as determinações da Convenção. “As legislações acerca da violência de gênero surgiram em 1990 e os números inverteram-se. Hoje, as mulheres são as mais afetadas pela questão da subtração”, observa.
Não há dados oficiais disponíveis a respeito dos casos de subtração internacional. Sabe-se apenas que cerca de 75% das ocorrências envolvem mães — a maior parte delas alega sofrer algum tipo de violência doméstica. “Geralmente, as mulheres viajam de férias, com autorização, e não retornam. Só querem resolver o problema de uma maneira que afete menos a vida das crianças e tirá-las de um ambiente tóxico”, conta Stella Furquim, cofundadora da Organização Não Governamental (ONG) Grupo de Apoio a Mulheres Brasileiras no Exterior (Gambe). “De 2020 a 2024, atendemos aproximadamente 450 mulheres. A maioria não tem processos em Haia, só quer resolver o divórcio, ter a guarda dos filhos e protegê-los”, ressalta.
Não demorou para Bernard solicitar à Justiça suíça o retorno de Moara ao país. Como de praxe, a Autoridade Central estrangeira acionou a Autoridade Central Administrativa Federal (Acaf) do Brasil, vinculada ao Ministério da Justiça. Neide recusou-se a voltar com a filha, e o processo entrou na esfera judicial. A Advocacia-Geral da União (AGU), que defende o compromisso brasileiro firmado na Convenção de Haia, encaminhou o processo. Psicólogos brasileiros avaliaram as condições emocionais da garota, quando ela ainda tinha oito anos, e as da mãe. Em relatório anexado ao processo, citaram sinais de “encarceramento emocional”. Quando falavam em voltar à Suíça, Moara ficava apavorada e rejeitava a proposta. Não houve indícios, segundo os profissionais, de violência sexual, nem de alienação parental por parte da mãe.
Apesar dos relatos e do laudo, Neide perdeu o processo e a Justiça brasileira determinou o retorno de Moara à Suíça. “O pai deu a ela remédios para que ficasse quieta durante a viagem, foi dopada. Não sei se ainda sofre violência sexual, porque ela não consegue falar, tem medo. Ela diz que vai me contar tudo quando voltarmos ao Brasil”, lamenta Neide.
O caso da pernambucana T.S. é um dos raros com desfecho diferente. Ela abandonou os Estados Unidos com os filhos — um deles menor de idade — para fugir das violências (inclusive sexual) cometidas pelo pai contra os meninos. Usou, para isso, uma das exceções previstas pela Convenção de Haia.
O Artigo 13, alínea “b”, prevê que as autoridades não precisam ordenar a volta quando “existe um risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável”. T.S. conseguiu a guarda dos filhos e permaneceu com eles no Brasil. Ainda assim, apesar das evidências de maus-tratos, a Justiça determinou que os garotos mantivessem conversas constantes por meio de chamadas de vídeo com o pai — o que eles não querem.
Neide apoiou-se no mesmo argumento, mas sem sucesso. “Eles não descrevem o que é um perigo de ordem física ou psíquica, uma situação intolerável. Isso está sujeito à interpretação dos países”, detalha Janaína. Ela explica que artigos como esse são propositalmente escritos de forma a garantir sua longevidade. “O que é factível de ser alterado é a interpretação dos termos. Até a identificação da violência é complicada. Em relação a gênero, violência doméstica e proteção à criança , a legislação brasileira é muito mais avançada. Uma situação descrita como violência moral no Brasil possivelmente não será interpretada assim em Portugal”, pontua.
O barulho das mães brasileiras nos últimos anos movimentou o Judiciário nacional. Desde 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) ignorava um pedido de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4245) para que “a Convenção seja interpretada à luz da Constituição”, atendendo aos interesses das crianças. Mais de 12 anos se passaram sem que houvesse julgamento. Entre 2022 e 2023, porém, a pressão dos diversos casos que chegaram ao noticiário fez o STF reagir. O tribunal ouviu organizações, cobrou informações da AGU e do Ministério da Justiça e marcou o julgamento para agosto de 2024 — mas adiou após a entrada de uma nova ADI (ADI 7686). No fim de maio, o tema voltou à pauta.
Em 2022, Celina Leão, então deputada federal, protocolou no Congresso o Projeto de Lei (PL) 565 para incluir a violência doméstica como exceção prevista pela Convenção de Haia. Aprovado, o PL seguiu para o Senado, onde recebeu novas emendas. No fim de maio deste ano, a Casa criou uma subcomissão temporária para discutir o tema. Em outubro, o Brasil sediará um encontro entre os países signatários da Convenção de Haia para abordar especificamente casos de violência doméstica. Ainda não há confirmação de data, nem local.