Mães de Haia

23 de junho de 2025

Aplicada em mais de cem países, a Convenção de Haia obriga que crianças levadas por um dos pais para o exterior retornem ao país de origem. Na prática, transforma em sequestradoras mães que fogem para proteger os filhos da violência.

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“Eu tenho medo e nojo desses dois: meu pai e Nicole [madrasta]. Não quero ficar aqui, mas também não quero ir para uma casa de adolescentes [instituição de acolhimento]. Quero ficar com minha mãe até o fim do processo. Essa casa é um inferno! Uma prisão! (…) Escrevo essa carta como última opção de ter minha vida de volta e conseguir seguir em frente, porque nesse lugar não tenho razão de viver.”

A carta de Moara Luna Heiniger, 15 anos, foi entregue, no ano passado, à Justiça suíça, onde mora com o pai, o suíço Bernhard Heiniger. Ela só pode ver a mãe, a brasileira Neide da Silva, às terças e em sábados alternados, por poucas horas — de duas a oito horas. Durante a semana, as visitas são monitoradas por um oficial de Justiça.

A história dessa família virou uma batalha judicial marcada por reviravoltas, dor e acusações gravíssimas desde a separação do casal, em 2015. Ainda antes do anúncio do divórcio, o genitor sumiu com Moara por dois meses. No reencontro, Neide conta que a filha “estava com pneumonia grave e as partes íntimas machucadas, indicando violência sexual”, crime do qual Neide alega também ser vítima do ex-marido. Ainda assim, a Justiça suíça concedeu a guarda ao pai.

Neide reverteu a decisão. Moara passou a morar com ela e a visitar o pai aos fins de semana. “Sempre que voltava, ela estava com hematomas, principalmente nas pernas, e com as partes íntimas machucadas. Quando Moara tinha entre cinco e seis anos, passou a se recusar a ir para a casa do genitor, chorava desesperadamente, eu precisava conversar muito para convencê-la a ir”, lembra Neide. Apesar dos traumas evidentes vivenciados pela garota, em 2017, uma nova decisão determinou a guarda para o pai — Neide tem dificuldades financeiras e o ex-marido alega ter mais condições para criar e educar a garota.

Em 2018, Neide e a filha viajaram para São Luís, no Maranhão. Era a primeira vez da garota com a família materna e no país de origem da mãe. Cansada dos maus tratos, Neide tomou uma decisão: não retornaria à Suíça. É nesse contexto que entra a Convenção de Haia, tratado internacional que rege disputas como essa.

O que diz a Convenção

Nos anos 1970, com a legalização do divórcio em vários países, surgiram debates sobre a guarda dos filhos em casos de casamentos binacionais. Na época, muitos pais fugiam para outros países em busca de decisões judiciais mais favoráveis. Assim, 103 países (como o Brasil) assinaram, em 1980, a Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, incluída na Convenção de Haia. Na prática, quando um dos responsáveis leva uma criança para o exterior sem a autorização do outro genitor, deve retornar ao país onde vivia antes, a chamada residência habitual. É lá que a Justiça vai decidir quem fica com a guarda da criança.

“A Convenção surgiu para regular a questão da competência, com o objetivo de determinar que o tribunal competente para decidir a guarda seja aquele com mais conexão com a criança”, explica a advogada Janaína Albuquerque, especialista em Direito Internacional da Família e coordenadora jurídica da Revibra Europa, rede europeia de apoio às vítimas brasileiras de violência doméstica e de gênero. “A Convenção não fala sobre guarda, mas a pretensão era resolver situações relacionadas a isso”, completa. Janaína acrescenta, que, com o tempo, surgiram novas questões que envolvem as determinações da Convenção. “As legislações acerca da violência de gênero surgiram em 1990 e os números inverteram-se. Hoje, as mulheres são as mais afetadas pela questão da subtração”, observa.

Não há dados oficiais disponíveis a respeito dos casos de subtração internacional. Sabe-se apenas que cerca de 75% das ocorrências envolvem mães — a maior parte delas alega sofrer algum tipo de violência doméstica. “Geralmente, as mulheres viajam de férias, com autorização, e não retornam. Só querem resolver o problema de uma maneira que afete menos a vida das crianças e tirá-las de um ambiente tóxico”, conta Stella Furquim, cofundadora da Organização Não Governamental (ONG) Grupo de Apoio a Mulheres Brasileiras no Exterior (Gambe). “De 2020 a 2024, atendemos aproximadamente 450 mulheres. A maioria não tem processos em Haia, só quer resolver o divórcio, ter a guarda dos filhos e protegê-los”, ressalta.

De volta à Suíça

Não demorou para Bernard solicitar à Justiça suíça o retorno de Moara ao país. Como de praxe, a Autoridade Central estrangeira acionou a Autoridade Central Administrativa Federal (Acaf) do Brasil, vinculada ao Ministério da Justiça. Neide recusou-se a voltar com a filha, e o processo entrou na esfera judicial. A Advocacia-Geral da União (AGU), que defende o compromisso brasileiro firmado na Convenção de Haia, encaminhou o processo. Psicólogos brasileiros avaliaram as condições emocionais da garota, quando ela ainda tinha oito anos, e as da mãe. Em relatório anexado ao processo, citaram sinais de “encarceramento emocional”. Quando falavam em voltar à Suíça, Moara ficava apavorada e rejeitava a proposta. Não houve indícios, segundo os profissionais, de violência sexual, nem de alienação parental por parte da mãe.

Apesar dos relatos e do laudo, Neide perdeu o processo e a Justiça brasileira determinou o retorno de Moara à Suíça. “O pai deu a ela remédios para que ficasse quieta durante a viagem, foi dopada. Não sei se ainda sofre violência sexual, porque ela não consegue falar, tem medo. Ela diz que vai me contar tudo quando voltarmos ao Brasil”, lamenta Neide.

Há exceções

O caso da pernambucana T.S. é um dos raros com desfecho diferente. Ela abandonou os Estados Unidos com os filhos — um deles menor de idade — para fugir das violências (inclusive sexual) cometidas pelo pai contra os meninos. Usou, para isso, uma das exceções previstas pela Convenção de Haia. 

O Artigo 13, alínea “b”, prevê que as autoridades não precisam ordenar a volta quando “existe um risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável”. T.S. conseguiu a guarda dos filhos e permaneceu com eles no Brasil. Ainda assim, apesar das evidências de maus-tratos, a Justiça determinou que os garotos mantivessem conversas constantes por meio de chamadas de vídeo com o pai — o que eles não querem.

Neide apoiou-se no mesmo argumento, mas sem sucesso. “Eles não descrevem o que é um perigo de ordem física ou psíquica, uma situação intolerável. Isso está sujeito à interpretação dos países”, detalha Janaína. Ela explica que artigos como esse são propositalmente escritos de forma a garantir sua longevidade. “O que é factível de ser alterado é a interpretação dos termos. Até a identificação da violência é complicada. Em relação a gênero, violência doméstica e proteção à criança , a legislação brasileira é muito mais avançada. Uma situação descrita como violência moral no Brasil possivelmente não será interpretada assim em Portugal”, pontua.

Brasil à frente

O barulho das mães brasileiras nos últimos anos movimentou o Judiciário nacional. Desde 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) ignorava um pedido de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4245) para que “a Convenção seja interpretada à luz da Constituição”, atendendo aos interesses das crianças. Mais de 12 anos se passaram sem que houvesse julgamento. Entre 2022 e 2023, porém, a pressão dos diversos casos que chegaram ao noticiário fez o STF reagir. O tribunal ouviu organizações, cobrou informações da AGU e do Ministério da Justiça e marcou o julgamento para agosto de 2024 — mas adiou após a entrada de uma nova ADI (ADI 7686). No fim de maio, o tema voltou à pauta.

Em 2022, Celina Leão, então deputada federal, protocolou no Congresso o Projeto de Lei (PL) 565 para incluir a violência doméstica como exceção prevista pela Convenção de Haia. Aprovado, o PL seguiu para o Senado, onde recebeu novas emendas. No fim de maio deste ano, a Casa criou uma subcomissão temporária para discutir o tema. Em outubro, o Brasil sediará um encontro entre os países signatários da Convenção de Haia para abordar especificamente casos de violência doméstica. Ainda não há confirmação de data, nem local.

Carol Castro
DÉBORA FARIA
Carol Castro
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