A menos de uma semana do seu início, a 30ª Conferência sobre Mudanças Climáticas (COP30) da Organização das Nações Unidas (ONU) já está ON em Belém, sede da edição deste ano. Vivendo intensamente de expectativas há pelo menos dois anos, convivendo com o negacionismo nacional de que seria capaz de chegar até o “Dia D”, a capital paraense agora já concentra diplomatas, chefes de Estado, ativistas e representantes de instituições, empresas e sociedade civil que chegam de todos os lados.
A COP30, que começou antes da cerimônia de abertura, expõe, em tempo real, as contradições entre o discurso climático e sua implementação, entre o Brasil que quer liderar e o mundo que hesita. Neste mês de novembro, a cidade que trouxe para si a responsabilidade de receber a primeira COP na Amazônia torna-se palco de uma disputa global por relevância, ambição e urgência.
A escolha do local não foi casual — simboliza o deslocamento do eixo da decisão para os territórios do Sul Global, que concentram tanto a riqueza natural quanto a vulnerabilidade social. E isso muda tudo. Com mais de 140 países confirmados e ao menos 57 chefes de Estado presentes, o evento representa o maior encontro da diplomacia climática desde Paris, onde foi assinado o Acordo de Paris, em 2015. Deverá, como nunca, concentrar a maior participação democrática da história das COPs. Ainda assim, como têm alertado lideranças indígenas, é preciso mais que palco: é preciso voz. Representantes de povos originários, comunidades tradicionais e grupos mais vulnerabilizados cobram presença nos espaços de formulação, e não apenas nas áreas simbólicas do evento. E esperam da Presidência brasileira mais do que escuta. Esperam repasse de poder.
“Nós, mulheres negras, cis e trans, vivemos diariamente os impactos da crise climática. E, mesmo assim, estamos excluídas dos processos de participação e dos espaços de decisão sobre os efeitos da maior emergência climática que se abate sobre nós”, afirma Lúcia Xavier, da ONG Criola. “Exigimos o reconhecimento dos nossos saberes e das soluções criadas ao longo dos séculos de existência neste país”, declara. Do lado institucional, o embaixador André Corrêa do Lago, presidente da COP30, tem sido claro — esta será uma conferência de execução, e não de promessas. Corrêa do Lago ressalta que ficou “frustrado com as entregas de NDCs da COP30” e que o prazo para apresentação foi descumprido por “países-chave”, o que compromete a avaliação global.
As NDC (sigla em inglês para Contribuições Nacionalmente Determinadas) representam os compromissos assumidos por cada país para mitigar as emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) e adaptar-se aos impactos da mudança climática, conforme previsto no Acordo de Paris. Pouco mais de 60 países haviam apresentado novas metas às vésperas da COP. Muitos governos optaram por adiar a submissão para garantir que as metas fossem críveis, mas o atraso prejudica a consolidação do Global Stocktake, o mecanismo de avaliação coletiva do progresso climático. Além disso, a nova rodada de metas foi criticada por não enfrentar de forma contundente a redução de combustíveis fósseis.
Segundo o Relatório Síntese das Contribuições Nacionalmente Determinadas, publicado pelo secretariado da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, na sigla em inglês), o conjunto de metas atuais deve reduzir somente 17% das emissões necessárias para manter o aquecimento global abaixo de 1,5 °C.
Ana Toni, diretora-executiva da conferência, reforça que o Brasil chega com um papel estratégico, oferecendo soluções viáveis, replicáveis e conectadas à realidade de países tropicais. E acrescenta que o foco estará em adaptação, financiamento climático e em uma transição que considere as desigualdades entre as nações e dentro delas.
A ausência dos Estados Unidos — que se retirou do Acordo de Paris, não confirmou a sua delegação de alto nível e tem se mantido ausente das tratativas mais ambiciosas sob a nova gestão de Donald Trump — altera a dinâmica do encontro. O multilateralismo, que parecia se fortalecer, volta a ser posto à prova. Por outro lado, Brasil, Colômbia, Congo e Indonésia articulam uma frente comum pelas florestas tropicais, que poderá redefinir as negociações sobre biodiversidade, mercados de carbono e financiamento para restauração.
Trata-se do Tropical Forests Forever Facility (TFFF), um fundo global proposto pelo Brasil, com potencial para mobilizar até US$ 125 bilhões para a conservação de florestas tropicais em países em desenvolvimento. A proposta está em negociação com vários parceiros e deve ser detalhada ao longo da conferência.
Entretanto, em Belém, o clima não é apenas geopolítico, mas também urbano, social e cotidiano. A cidade vive uma transformação acelerada. A orla reformada, as avenidas requalificadas e os centros de eventos recém-inaugurados contrastam com o cotidiano das periferias, que assistem à movimentação com olhos divididos entre o orgulho e o ceticismo. Moradores relatam aumento do custo de vida, deslocamentos forçados e insegurança sobre o futuro do que se convencionou chamar de legado. O que ficará quando as comitivas forem embora?
A sociedade civil, por sua vez, organiza-se como há muito não se via. “Belém não será somente palco das negociações oficiais, mas também abrigará espaços pulsantes promovidos por organizações e movimentos da sociedade civil, como há muitas edições não víamos”, aponta Jonathas Azevedo, diretor-executivo da Rede Comuá e coordenador da Casa Sul Global. “Na chamada COP da implementação, a sociedade civil precisa exercer um papel protagonista”, acrescenta.
Dentre as metas brasileiras, figura a redução, até 2035, de 59% a 67% nas emissões de GEE em relação a 2005, além da promessa de zerar o desmatamento ilegal até 2030. O desafio é monumental e a diferença entre o que está definido e o que é plausível exige clareza de mecanismos, indicadores e financiamento, todos ainda nebulosos. “Nossa expectativa é que a conferência consolide compromissos concretos para ampliar o acesso a crédito, fortalecer políticas públicas e valorizar o papel das populações tradicionais, agricultores familiares e negócios comunitários na transição para uma economia de baixo carbono”, defende Fernando Moretti, líder do Núcleo de Crédito Socioambiental no Instituto Conexões Sustentáveis (Conexsus).
Paralelamente às metas nacionais, o Brasil também apresentará um modelo de padronização Ambiental, Social e de Governança (ASG), com a norma PR-2030 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), publicada em dezembro de 2022. A proposta busca harmonizar os critérios usados por empresas e investidores no País e reforçar a credibilidade dos dados ambientais, sociais e de governança, sinalizando uma tentativa de conexão entre os acordos multilaterais e os instrumentos concretos de mercado.
A COP30, nesse contexto, será também um teste de coerência. O Brasil apresenta-se como articulador global, defensor da justiça climática e anfitrião da floresta. Mas precisará provar, nos detalhes, que é capaz de integrar infraestrutura e inclusão, protagonismo e escuta, diplomacia e transformação concreta. Com o Global Stocktake em fase decisiva e os prazos do Acordo de Paris se estreitando, as margens para discursos genéricos diminuíram. Os olhares estarão voltados para decisões que saírem das salas de negociações, assim como para silêncios. “Chegamos com expectativa de que a conferência, realizada em solo brasileiro, fortaleça a transição climática justa e ambiciosa”, declara Luan Santos, coordenador de Pesquisas do Climate Finance Hub Brasil. “É preciso impulsionar a colaboração entre empresas, setor financeiro, academia, sociedade civil e governos”, avalia.
Por sua vez, a coordenadora do Programa Cerrado do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), Isabel Figueiredo, destaca a interdependência dos biomas brasileiros e a necessidade de não se olhar apenas para a Amazônia, apesar do seu protagonismo nesta COP. “Com a campanha Cerrado, Coração das Águas, esperamos inserir o bioma na pauta do evento, ressaltando a sua importância hídrica, que sustenta, inclusive, a Amazônia”, detalha.
Belém, ao fim, vê-se diante de um paradoxo — é ao mesmo tempo palco e personagem. Recebe os olhos do mundo, mas é em suas ruas que se mede a coerência entre discurso e prática. Como aponta Patrícia Daros, diretora de Soluções Baseadas na Natureza da Vale, responsável pelo Fundo Vale, “a conferência é um espaço fundamental para apresentar ações concretas que já estão sendo realizadas, conectando ciência, comunidades, empreendedores e investidores em espaços estratégicos. Queremos fortalecer conexões e inspirar ações”
A diretora-executiva do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS), Paula Fabiani, complementa: “O avanço da agenda climática não resulta só de acordos internacionais e políticas públicas, requer uma ação coordenada entre diferentes setores da sociedade, mobilização de recursos estratégicos e colaboração contínua”.
A cidade acolhe chefes de Estado, mas a justiça climática será testada em suas margens, territórios e populações. O Brasil, com a Amazônia como argumento e realidade, tem a chance de mostrar ao mundo que é possível articular poder e escuta, influência e equidade, ambição e humildade. A COP30 não começa no dia 10 de novembro. A conferência já está em curso — nas urgências que se acumulam, nos compromissos que atrasam e nas vozes que, desta vez, não aceitam mais ser decorativas.
O lançamento do TFFF desponta como uma das principais cartas que o Brasil deve levar à COP30. Anunciado oficialmente pelo governo federal em 2024, o TFFF propõe uma nova arquitetura para o financiamento climático internacional, com foco específico nas florestas tropicais — biomas de enorme relevância para o equilíbrio climático global e que, apesar disso, continuam recebendo uma fatia ínfima dos recursos multilaterais existentes.
O objetivo declarado do TFFF é mobilizar US$ 250 bilhões até 2060, sendo US$ 100 bilhões para pagamentos diretos anuais aos países tropicais que mantiverem suas florestas em pé, com base em resultados comprovados, e US$ 125 bilhões por meio de um fundo endowment que gere rendimentos permanentes para sustentar os repasses. A proposta inclui aportes públicos, privados e filantrópicos, e parte da meta é garantir que pelo menos 20% dos recursos cheguem diretamente a povos indígenas e comunidades tradicionais, com US$ 4 para cada hectare de floresta conservado.
Com isso, o TFFF pretende funcionar como uma “aposentadoria verde”, garantindo previsibilidade de receita para os países florestais e valorizando a floresta em pé, um mecanismo que, segundo seus idealizadores, pode corrigir a assimetria histórica dos fluxos de financiamentos climáticos. Hoje, mais de 90% dos fundos climáticos ainda se destinam a países do Norte ou mitigação industrial, e menos de 1% chega a povos indígenas e comunidades locais.
O governo brasileiro, que anunciou uma contribuição inicial de US$ 1 bilhão, calcula que, com desmatamento zero até 2030, poderia receber até R$ 7 bilhões anuais do TFFF e de outros mecanismos, como o REDD+.
No entanto, o modelo vem sendo criticado por organizações como o Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM, na sigla em inglês). Em nota técnica publicada em outubro, o WRM alerta que o TFFF pode reproduzir velhas lógicas financeiras sob nova roupagem. A estrutura, baseada em captação de títulos e reinvestimento em dívidas soberanas e privadas, tende a beneficiar intermediários do mercado financeiro, e não os territórios. Além disso, a narrativa de que o capital poderá salvar as florestas ignora os próprios vínculos entre o sistema financeiro global e as causas estruturais do desmatamento, como as expansões do Agronegócio e da Mineração.
A disputa central, portanto, vai além do volume de recursos. Trata-se de uma escolha política e simbólica: o TFFF será um novo pilar de justiça climática global, desenhado a partir do Sul e com governança multilateral efetiva, ou mais uma engrenagem do chamado capitalismo verde, com metas ambientais e retórica participativa, mas sem redistribuição real de poder?
Na COP30, essa pergunta deve ganhar palco. Um fundo que se propõe a proteger o futuro das florestas não pode ignorar as histórias de quem vive e resiste nelas todos os dias.