O ano de 2024 foi uma tragédia climática. Globalmente, o mais quente da história. No Brasil, calor extremo e confusão no regime de chuvas incendiaram Norte e Sudeste e, há um ano, parte do Rio Grande do Sul ficou embaixo d’água. Agora, o governo toma medidas para amenizar os efeitos das mudanças climáticas nas cidades, mas é pouco: faltam ações de curto prazo para reduzir a vulnerabilidade da população em ondas de calor, secas e enchentes.
Bastou meia hora para a água tomar conta da estação de metrô Jardim São Paulo, na zona norte da Cidade de São Paulo, em janeiro. A tempestade histórica, com o segundo maior volume de chuva desde 1961, despejou, naquele dia, 124 milímetros de água na capital paulista — o suficiente para alagar ruas inteiras, derrubar árvores e deixar 140 mil paulistanos sem energia elétrica. No outro extremo, a Cidade do Rio de Janeiro sofreu, no mesmo mês, em fevereiro, a maior seca desde 1997. E os cariocas sentiram: a sensação térmica ultrapassou 50°C, levando 3 mil pessoas a procurarem atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS) por causa do calor intenso.
Os dados mostram que os efeitos das mudanças climáticas já se apresentam há anos. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o número de ondas de calor saltou de 7 para 32 ocorrências nas últimas três décadas. E os períodos sem chuvas consecutivas pularam de 80 para 100 dias nos últimos 60 anos. Não à toa, no ano passado, os eventos climáticos foram catastróficos no Brasil. Em maio de 2024, o Rio Grande do Sul sofreu enchentes devastadoras: entre os 497 municípios do Estado, 478 ficaram debaixo d’água, deixando 183 mortos e afetando diretamente 2,4 milhões de pessoas. As mudanças climáticas e o fenômeno El Niño intensificaram as chuvas, evidenciando a vulnerabilidade da região a eventos climáticos extremos.
Segundo o MapBiomas — uma rede de pesquisadores ambientais composta por universidades, ONGs e empresas de tecnologia —, 2024 também foi o ano em que o Brasil pegou fogo. Entre janeiro e dezembro, mais de 30 milhões de hectares viraram cinzas no País, aumento de 79% em relação ao ano anterior e um recorde desde que os dados passaram a ser registrados, em 2019. “Uma característica da mudança climática são os extremos, com chuvas mais intensas em poucos dias, que podem deflagrar desastres, e secas longas que, junto com as ondas de calor, podem aumentar os riscos de incêndios florestais. A vulnerabilidade da população e a exposição a essas ocorrências climáticas não diminuíram, só aumentaram”, alerta José Marengo, coordenador-geral do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). “Precisamos de algo de curto prazo, o tema precisa ser discutido. Uma das coisas que percebemos no Brasil é que não existe cultura de prevenção, só de reação. Isso precisa mudar”, enfatiza.
De fato, o Brasil não se mostra pronto para encarar os eventos extremos. De acordo com o Anuário Estadual de Mudanças Climáticas, produzido pelo Centro Brasil no Clima (CBC) e pelo Instituto Clima e Sociedade (iCS), apenas oito Estados brasileiros têm planos de adaptação a essas mudanças, dos quais 37% nem sequer apresentam estratégias de contingência para que a Defesa Civil possa responder a desastres naturais. Não agir na prevenção custa caro para os cofres públicos — e para os cidadãos.
Para recuperar o Estado gaúcho, o governo federal aprovou um pacote de R$ 50 bilhões. Esse valor, segundo o relatório Política Climática por Inteiro, do Instituto Talanoa, representa “quase 75% do total que o governo planeja economizar em dois anos com as recentes medidas de corte de gastos”. Para os cidadãos, a conta chega na hora de pôr comida no prato. O MMA calculou que os eventos climáticos podem levar mais 3 milhões de brasileiros à extrema pobreza a partir de 2030 — e o custo de não fazer nada para remediar os desastres ambientais seria de R$ 1,8 trilhão a menos no Produto Interno Bruto (PIB) nacional, até 2050. No mundo, segundo o relatório britânico Planetary Solvency — Finding our Balance with Nature, o PIB do planeta pode derreter à metade entre 2070 e 2090.
Boa parte do investimento destinado ao Rio Grande do Sul mira a reconstrução — e não necessariamente a adaptação das cidades aos eventos climáticos extremos. E o Estado figura na lista dos que ainda não possuem um plano para reduzir a vulnerabilidade das cidades, segundo o Anuário. No entanto, desde o ano passado, o governo gaúcho mostra-se mais atento à necessidade de adaptação. Um dos projetos, já em execução, é a criação de estruturas dedicadas à segurança de barragens — um dos pontos mencionados por especialistas, na época das enchentes, era justamente a necessidade de reconstruir estruturas hidráulicas. O governo prevê, ainda, um investimento de R$ 300 milhões para fazer a limpeza e aumentar a profundidade de leitos de rios e canais, como forma de prevenir futuras enchentes.
O Espírito Santo, um dos oito Estados que construiu um plano de adaptação às mudanças climáticas, preparou-se para lidar com os eventos extremos. Em 2023, o governo estadual criou o Fundo Cidades — Adaptação às Mudanças Climáticas, com previsão de investimento de R$ 1 bilhão nos municípios capixabas até 2026. Até o momento, o governo realizou obras de drenagem, macrodrenagem e contenção de encostas, além da construção de barragens e muros de arrimo.
Ainda assim, é generalizada a falta de atenção, de todos os governos, para uma solução bem mais óbvia: a arborização das cidades. Quase não há espaços verdes nos centros urbanos. Para se ter uma ideia, apenas 7% desses territórios são cobertos por vegetação, segundo dados do MapBiomas. “As ilhas de calor são formadas pela falta de verde e pelo excesso de asfalto, de concreto, e geram eventos climáticos extremos. As tempestades estão cada vez mais fortes. São Paulo, que até os anos 1970 era a ‘terra da garoa’, hoje, transformou-se na cidade das tempestades violentas”, afirma o botânico Ricardo Cardim, criador de uma técnica para plantio de florestas urbanas. “Para diminuir a impermeabilidade, tem de plantar árvores. Paredes e telhados verdes não são ferramentas adequadas para o Brasil, porque nem sequer conseguimos cuidar das árvores que estão na terra”, pontua.
Cardim defende, por exemplo, que as vagas de estacionamento nas ruas cedam espaço para as árvores. Mas não é qualquer árvore. É importante que sejam espécies nativas e altas, e não apenas ornamentais. “Não adianta plantar a árvore errada, que funciona só como enfeite. Precisa ser a espécie correta, que faça sombra e seja nativa daquela região. Ao plantarmos uma muda grande, teremos sombra num curto tempo, o que aumenta a umidade do ar. Ela vai fazer os serviços ambientais necessários”, explica.
Paris apostou nessa solução. O seu governo comprometeu-se a trocar por árvores 60 mil vagas de estacionamento até 2030. A ideia é transformar 100 hectares do municípío em área verde. “As cidades precisam investir em jardins de chuva e na expansão dessas áreas. É isso que faz toda a diferença na sensação térmica. E é um investimento que vale a pena. Se o governo não investir na arborização e no cuidado com essas árvores, vai gastar em outro lugar, como no sistema público de saúde [em razão das doenças decorrentes do calor extremo]”, destaca Cristiane Cortez, assessora técnica do Conselho de Sustentabilidade da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP).
Em São Paulo, o ex-prefeito Fernando Haddad, atual ministro da Fazenda, tirou vagas de estacionamento na rua para construir parklets — um espaço com bancos e mesas feitos de paletes —, na tentativa de humanizar e democratizar as ruas. “Para uma árvore, nem precisa daquele espaço todo. Uma área de 1,5 metro de comprimento por 1 metro de largura já é suficiente para plantar uma espécie grande”, defende Cardim. Marengo ressalta, ainda, outra medida emergencial que precisa ser posta em prática em todas as cidades: sistemas de alerta e preparação de bombeiros e Defesa Civil para lidar com desastres decorrentes das mudanças climáticas. “Quando falamos de vulnerabilidade, precisamos olhar que tipo de vulnerabilidade é essa. Se as pessoas estão perto de córregos, serão as principais atingidas em inundações. Em primeiro lugar, elas nem deveriam estar ali. Precisamos de muros de proteção e revitalização da vegetação”, detalha. “É preciso também informar a população sobre rotas de fuga. Não adianta ter a melhor previsão se a população não sabe o que fazer. São necessários placas e caminhos bem sinalizados. E os socorristas precisam ser capacitados para lidar com incêndios, não adianta contar com a ajuda de voluntários sem treinamento”, critica.
Só que o problema vai além do emergencial ou de medidas paliativas. A solução real para evitar o caos climático é por outro caminho: a recuperação do planeta. E o Brasil tem papel crucial nisso, não apenas por abrigar a maior parte da Floresta Amazônica, mas também por figurar entre os maiores emissores de Gases de Efeito Estufa (GEE) do mundo — somos o sexto no ranking mundial dos maiores poluidores, com emissão de cerca de 2,3 bilhões de toneladas de GEE, ou 2% de tudo que é emitido na atmosfera.
Ainda que o País tenha sido um dos poucos signatários do Acordo de Paris a ter enviado a meta atualizada da Contribuição Nacional Determinada (NDC, na sigla em inglês) — 95% dos países não tinham enviado até fevereiro de 2025 —, organizações ambientais querem um comprometimento maior. O governo brasileiro planeja reduzir a emissão de GEE (de 59% para 67%) até 2035. Segundo o Observatório do Clima (OC), o compromisso deveria ser maior (de 92%), liberando 200 milhões de toneladas por ano desses gases.
Dois setores são os maiores responsáveis, no Brasil, pela emissão desses gases: o desmatamento e a agropecuária. Esta última, segundo dados do Sistema de Estimativa de Emissão de Gases (Seeg), só registra aumentos nas emissões, desde 2018 — consequência da gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro e de seu ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que incentivou a “passar a boiada” enquanto as atenções estavam voltadas para a pandemia. Mesmo sob a gestão Lula, o setor aumentou as emissões em 2%, entre 2022 e 2023.
Por outro lado, o atual governo comemora a redução nas taxas de desmatamento. Apesar das queimadas históricas do ano passado, as áreas desmatadas caíram 30% na Amazônia — a menor taxa desde 2017 — e 25% no Cerrado. Um dos compromissos é chegar ao desmatamento zero até 2030. “O problema é o seguinte: todos os compromissos são feitos considerando apenas a emissão de gás carbônico. E árvore não é só CO² estocado. Ela participa do equilíbrio climático, tem o papel de ser um climatizador natural”, critica a cientista Luciana Gatti, coordenadora do Laboratório de Gases de Efeito Estufa do Inpe. “Não adianta comemorar a redução do desmatamento, porque seguimos perdendo árvores. Se houvesse, de fato, uma preocupação ambiental, o governo não estaria tentando explorar petróleo na foz do Rio Amazonas, tampouco aumentando o número de termelétricas no País”, compara a cientista.
Entretanto, Luciana reconhece que o MMA, liderado por Marina Silva, tem segurado como pode o avanço de políticas desenvolvimentistas que não considerem os impactos ambientais. “O MMA faz um trabalho maravilhoso, mas os outros ministérios, como o da Agricultura e o de Minas e Energia, andam na direção oposta. Simone Tebet [ministra do Planejamento e Orçamento] pegou dinheiro emprestado de um banco internacional para asfaltar uma estrada na Amazônia e construir um porto. Para quê? Para o Brasil destruir cada vez mais a Floresta Amazônica e aumentar as exportações. Enquanto isso, os alimentos estão cada vez mais caros, como resultado das mudanças climáticas”, reforça.
No fim de 2024, o Ministério do Planejamento e Orçamento anunciou o megaprojeto Rotas de Integração Sul-Americana, com 190 obras de infraestrutura previstas em 11 estados de fronteira. “Juntos, esses caminhos permitirão avanços sociais inestimáveis à população brasileira e aos povos vizinhos de nossos continentes”, escreveu Tebet, no projeto. O objetivo é expandir o comércio com outros países e reduzir o custo do transporte.
Em 2023, o governo restaurou o Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima, uma tentativa de aproximar os ministérios na luta pelo meio ambiente. No ano passado, foi criado o Plano Clima, que levou para consulta pública a Estratégia Nacional de Adaptação (ENA). Os objetivos do plano são avaliar a vulnerabilidade do País a eventos extremos, propor formas de garantir a produção de alimentos e o fornecimento de energia e orientar as ações para lidar com as mudanças climáticas até 2035. O projeto cria estratégias de mitigação, que preveem redução de emissão de GEE para conter as mudanças no clima, e de adaptação, para minimizar as consequências inevitáveis dos eventos extremos.
A realização da COP30, na capital do Pará, Belém — que será, até 2050, a segunda cidade mais quente do mundo, segundo estudo da ONG CarbonPlan —, também acelerou os planos de mitigação e adaptação do País. “As ações ambientais aceleraram-se, isso é bom. Mesmo assim, os desastres continuam acontecendo. Precisamos focar também nas ações rápidas para reduzir a vulnerabilidade da população. E, por enquanto, isso ainda não está avançando como deveria”, conclui Marengo, do Cemaden.