Dar a destinação correta para o lixo é um problema que assombra cidades mundo afora. Afinal, o que fazer com a enorme quantidade de resíduos que geramos diariamente? Segundo uma reportagem do Globo Repórter divulgada em 2022, cada paulistano produz cerca de um quilo de lixo por dia, cuja metade provém de material orgânico. Considerando apenas a capital paulista, estamos falando de mais de 10 milhões de quilos de lixo todos os dias. Nesse contexto, cabe aos governos a difícil tarefa de dar uma finalidade correta para esse material, normalmente descartado em lixões e que, sem tratamento adequado, contaminam o ambiente e causam doenças. A boa notícia: é possível reaproveitar esses resíduos e até transformá-los em energia.
Essa é uma das maneiras para se chegar ao biometano, uma fonte renovável de energia que pode reduzir o impacto ambiental causado pelo consumo de combustíveis fósseis, além de solucionar o problema de destinação do lixo orgânico. O tema tem ganhado cada vez mais destaque e está entre as prioridades de empresas, governos e sociedade. “É uma solução que, sozinha, não vai resolver o problema, mas pode contribuir muito para a transição energética”, avalia o professor José Goldemberg, presidente do Conselho de Sustentabilidade da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP) e ex-ministro de Ciência e Tecnologia.
O biometano, produzido a partir de restos orgânicos, pode ser um substituto direto do gás natural. Além disso, a sua aplicação se estende a combustível para transporte (GNV), processos industriais, residências e produção de fertilizantes nitrogenados. O professor explica que, para a sua utilização, o gás é retirado do processo de decomposição anaeróbica (na ausência de oxigênio) de resíduos orgânicos, que podem vir de lixo, esgoto urbano, agricultura, pecuária, suinocultura e gado leiteiro. Em seguida, é submetido a um processo conhecido como upgrading do biogás, que consiste na purificação e na separação do metano e do dióxido de carbono, sendo produzido, assim, o biometano. Com características similares ao do gás natural de petróleo, pode ser misturado na mesma rede de gasodutos, nos canos de casas e empresas ou nos tanques de veículos que utilizem gás de petróleo. “Na Holanda, por exemplo, há uma rede de gasoduto que reúne também o gás que vem dos biodigestores [equipamento usado para o processamento de matéria orgânica]”, comenta o professor.
“Hoje, o biometano substitui facilmente o gás sem nenhuma adaptação de equipamento. Pode substituir combustível de caldeira ou gás natural para ônibus ou automóvel”, comenta Milton Pilão, CEO da Orizon Valorização de Resíduos. “Já temos o resíduo, que é gerado pela sociedade todo dia e vai voltar como combustível renovável e promover a descarbonização”, complementa Pilão.
Goldemberg lembra que o biometano é usado, há muito tempo, em grandes quantidades em países mais pobres. “Eles perceberam que o resíduo orgânico produz gás metano, e o que sobra ainda vira adubo. É uma ideia velha, mas que, agora, está sendo adotada em várias nações. Na Índia, por exemplo, há cerca de 500 mil cidades pequenas que aprenderam a fazer biodigestores. Alguns casos são individuais, com as famílias possuindo os equipamentos em suas casas, mas tem também o biodigestor comum da comunidade em vilas pequenas. Essa solução é boa porque evita, dentre outras coisas, que as pessoas cortem as árvores para cozinhar, por exemplo”, avalia o professor. Importante destacar que, atualmente, cerca de 40% dos resíduos sólidos brasileiros ainda são enviados para lixões.
Renata Isfer, presidente-executiva da Associação Brasileira do Biogás (Abiogás) reforça que o biometano faz aproveitamento adequado dos resíduos — atualmente, um dos principais problemas da sociedade — e gera energia renovável. “Só que, hoje, aproveitamos apenas 2% dos nossos resíduos. É importante contar com políticas públicas que promovam a inserção de novas fontes na matriz, reduzindo o hiato entre o potencial e a efetiva geração de energia”, comenta Renata. Além disso, destaca, o incentivo à produção de biometano também contribui para a geração de empregos. “Um estudo da ONU mostra que se usarmos todo o potencial de biometano, que é de 120 milhões de metros cúbicos por dia, podemos gerar mais de 700 mil empregos no Brasil”, salienta a executiva da Abiogás.
Renata comenta ainda que o Brasil tem grande potencial para se tornar um dos maiores produtores de biometano do mundo. “O País, se conseguir explorar todo o seu potencial de biomassa, pode chegar ao quinto produtor mundial em 2027 — apesar de, hoje, a produção ainda ser pequena, só 700 mil metros cúbicos por dia”, considera Pilão. Atualmente, existem 20 plantas de biometano no Brasil, que produzem cerca de 1 milhão de metros cúbicos por dia. A estimativa é chegar a 90 unidades até 2029, com 120 milhões de metros cúbicos diários, conforme cálculos da Abiogás.
Estudo realizado pela McKinsey mostra que o valor do mercado brasileiro de biometano pode atingir USD 15 bilhões até 2040, aproveitando resíduos e subprodutos de quatro indústrias: cana-de-açúcar, pecuária, gado leiteiro e suinocultura, além de lixo e esgoto urbano. No entanto, atualmente, o Brasil usa apenas 10% desse potencial.
Diante do crítico cenário de reduzir o aquecimento global, empresas estão buscando alternativas para gerar energia e, ao mesmo tempo, cumprir as metas de descarbonização. Sob essa ótica, o biometano é um importante aliado, já que pode reduzir as emissões em até 80% na comparação com o combustível fóssil. “O biometano é uma bionergia que será, sem dúvida, um dos grandes motores no processo de descarbonização das indústrias do Brasil”, aponta Pilão, ao afirmar que a Orizon considera o biometano uma vertente forte da companhia. Nos últimos dois anos, o plano de negócios previu a construção de 16 ecoparques, onde são instaladas indústrias de revalorização do resíduo, mas sempre conexo aos aterros, distribuídos em 11 Estados diferentes, os quais recebem em torno de 9 milhões de toneladas de resíduos por ano. O projeto demandou investimento na ordem de R$ 1,2 bilhão.
A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), por sua vez, utiliza o biogás gerado no tratamento do esgoto para movimentar uma frota de 40 veículos em Franca (SP). O investimento total no projeto foi de R$ 7,4 milhões, realizado em parceria com o Instituto Fraunhofer IGB, da Alemanha. O projeto-piloto, que faz o tratamento do esgoto de cerca de 400 mil pessoas na cidade, garante a geração em gás equivalente a 2 mil litros de gasolina por dia, o que dá uma economia de R$ 500 mil por ano à empresa.
Já na Terra Indígena do Jaraguá, na capital paulista, cerca de 800 moradores participam do programa que levou 38 biodigestores acoplados a banheiros químicos ao local. O modelo, inspirado no estômago de uma vaca, o biodigestor inflável, construído com camadas de lona e polímeros, transforma as fezes humanas em gás de cozinha e biofertilizante. Além de gerar gás para cozinhar e fertilizante para a plantação, o sistema também garante o saneamento básico ao povo indígena.