A insaciável fome da IA por energia

31 de outubro de 2024

S

Só é possível obter uma boa resposta quando se faz a pergunta certa. Esse é o princípio básico que orienta a Inteligência Artificial (IA) generativa. Afinal, quanto mais detalhada for a dúvida de quem pesquisa, maior será a precisão da resposta que a ferramenta dará. Todavia, velocidade e precisão têm um preço que, recentemente, entrou no radar dos especialistas: a cada pergunta dirigida a um robô alimentado por um modelo generativo — como ChatGPT, Gemini e Llama, para ficar nos mais famosos —, o planeta retrocede no caminho em busca da redução das emissões que causam o aquecimento global. Fato é que quanto mais sofisticada a ferramenta se torna, maior será o consumo de energia na operação. Trata-se de um paradoxo para uma tecnologia que surgiu para agilizar operações e gerenciar o consumo, buscando a economia e a sustentabilidade, e passou a ser parte do problema. 

Embora exista um amplo debate sobre os desafios e as oportunidades em torno da ferramenta, das questões éticas às profundas transformações no mundo do trabalho, sabemos que essa tecnologia vem sendo aplicada de forma bem-sucedida em áreas como Medicina, Segurança, Análise de Dados, Entretenimento, Produtividade e Gerenciamento de Processos. O mais novo ramo da IA (o tipo generativo) utiliza tecnologias de PLN (processamento de linguagem natural) e LLM (Large Language Model, ou “grande modelo de linguagem”), ideal para trabalhos que demandem a geração de conteúdos, textos, imagens, vídeos e respostas a perguntas simples ou complexas. Esses modelos, que processam grandes quantidades de dados para gerar respostas coerentes e humanizadas, exigem treinamento intensivo. E quanto mais sofisticado e profundo esse treinamento, maior o número de parâmetros utilizados e mais poderosa a tecnologia, com melhores chances de atender às necessidades dos usuários — num processo que consome muitos megawatts, gigawatts e terawatts de energia elétrica para funcionar, uma “geringonça” virtual indispensável, mas pouco criteriosa sob o ponto de vista sustentável.

Vilões do consumo

A Agência Internacional de Energia (AIE) divulgou, no início de 2024, um relatório que estima que a demanda por eletricidade vai dobrar até 2026 em decorrência dos data centers ligados 24 horas por dia, 7 dias por semana, para sustentar as operações de mineração de criptomoedas e da IA. Em 2022, essas tecnologias representavam perto de 2% da necessidade global de eletricidade, cerca de 460 terawatts-hora (TWh). A AIE calcula que esses novos “vilões” (data centers, IA e criptomoedas) podem representar 1.050 TWh até 2026, o dobro de toda a energia consumida pelo Brasil inteiro em um ano (506 TWh). As previsões são baseadas no uso cada vez mais intensivo da ferramenta generativa por grandes corporações e Big Techs, em especial nos países desenvolvidos. O próprio Sam Altman, CEO da OpenAI, admitiu que a energia é a parte mais difícil de satisfazer entre as diligências de computação da IA. 

Outra análise, desta vez da Rystad Energy, consultoria independente de pesquisas do setor, também chama a atenção. A empresa avaliou o impacto da IA sobre o consumo energético dos Estados Unidos até 2030, concluindo que com base na expansão combinada de data centers, IA e processos de fundição dos chips com a tecnologia embutida, a demanda por energia passará dos atuais 130 TWh para 307 TWh em cinco anos, mais do que o dobro. 

São dados preocupantes que reforçam o alerta para os danos do consumo desenfreado — inclusive o energético — ao planeta, segundo cientistas do clima, consultores de Tecnologia da Informação (TI), advogados ambientais e desenvolvedores de IA. As empresas, por sua vez, cientes do tamanho desafio, ampliam estudos para tentar garantir que o armazenamento de tantos dados não se torne insustentável. “O uso intensivo de energia e de informações necessárias para um bom desempenho da IA provoca muita pressão nos desenvolvedores e no setor energético para se obter mais eficiência”, observa Eduardo Caldeira, diretor de Sales Power Utilities Brasil da Siemens Energy. “A construção e a manutenção de data centers requerem grandes quantidades de água para resfriamento e materiais raros para a fabricação de hardware [cobre, lítio, estanho etc.].” Caldeira aponta que a urgência por eletricidade é apenas um dos impactos da IA que precisam ser contemplados em uma abordagem responsável pelas empresas. 

Protagonismo brasileiro 

Carlos Nobre, um dos mais importantes cientistas do clima do País, pesquisador no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP) e copresidente do Painel Científico para a Amazônia, lembra que a questão não é só quanto ao uso de IA, à mineração de criptomoedas e ao trabalho contínuo dos data centers, mas também aos demais setores da economia que seguem adiando uma real transição energética e mantêm elevado o nível de consumo de combustíveis fósseis. “Tudo isso será solucionado quando pararmos de queimar carvão e petróleo e começarmos a optar por energia limpa”, enfatiza Nobre.

Nesse cenário, o pesquisador ressalta o protagonismo nacional na promoção de uma energia limpa, já que o País “desempenha papel de destaque na produção de energia elétrica a partir de fontes renováveis e pode liderar o movimento no âmbito global”. De toda a eletricidade produzida no Brasil em 2023, cerca de 90% vêm de fontes limpas, segundo estudo da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). A média global é de apenas 30%.

Ainda segundo Nobre, o tema ganha importância com a realização da 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP30), em Belém do Pará, no próximo ano. Com o crescimento nos projetos sustentáveis e nos investimentos em fontes mais verdes, especialistas arriscam dizer que, até 2030, metade de toda a matriz energética brasileira (que inclui todas as fontes utilizadas, inclusive o petróleo dos carros) será renovável. O Brasil assumirá esse protagonismo frente aos países que dependem majoritariamente de  combustíveis fósseis, como Estados Unidos, União Europeia, China e Índia — regiões que lideram a emissão de Gases de Efeito Estufa (GEES) e também sediam data centers e provedores de IA.  

Samanta Pineda, advogada de Direito Socioambiental, que atuou na elaboração do novo Código Florestal e na formulação de leis do gênero, concorda com a visão do professor a respeito da tarefa do Brasil na transição energética global. “É hora de deixarmos de perder oportunidades”, diz. “Temos a característica de sermos um país com fontes sustentáveis. Precisamos aproveitar a chance para criar parques tecnológicos com energia limpa e evitar que o aumento da demanda energética seja tão impactante como é hoje nos Estados Unidos.” Samanta também defende que as Big Techs e as grandes organizações que investem forte em data centers construam polos no Brasil.

O papel de quem consome

Não é novidade que empresas como Amazon, Apple, Alibaba, Google, Meta e Microsoft — as famosas Big Techs — gastam bilhões de dólares para ampliar a capacidade e atender à enorme demanda por serviços de computação na nuvem, processamento de dados e IA. A Microsoft, por exemplo, anunciou que planeja investir US$ 100 bilhões num novo data center para a instalação do supercomputador Stargate, além de dar suporte ao desenvolvimento de IA em parceria com a OpenAI. 

Caldeira, da Siemens Energy, lembra que os projetos de energia limpa podem levar até sete anos para serem concluídos nos Estados Unidos, enquanto países europeus, como Irlanda e Alemanha, impõem fortes restrições para a instalação de novos data centers em decorrência da carga gerada nas suas redes pela tecnologia. “O Brasil aparece com essa perspectiva promissora pela matriz energética abundante, verde e relativamente mais barata, que passa a ocupar um espaço estratégico no ambiente de negócios alinhado à agenda ESG e à descarbonização dos investidores globais”, afirma o executivo. Samanta faz um paralelo entre a IA generativa e o carro elétrico, que surgiu como alternativa mais limpa, mas precisa de eletricidade: se a matriz for à base de carvão ou petróleo, prejudica-se a vantagem da emissão zero de dióxido carbono do veículo. 

Mas nem tudo é tão ruim que não possa melhorar. Já existem iniciativas que podem ajudar a encontrar respostas para uma equação mais justa entre consumo e meio ambiente. O Google, por exemplo, admite no seu relatório anual de sustentabilidade, que suas emissões de GEE aumentaram 13% em 2023, mas mantém o compromisso de usar apenas energia livre de carbono até 2030. Para isso, conta com uma “infraestrutura de ponta e desenhada para a IA, como a ferramenta Trillium, uma Unidade de Processamento Tensor (TPU) de sexta geração e 67% mais eficiente em termos energéticos”. Em testes realizados, a multinacional identificou uma “redução em até cem vezes da energia necessária para treinar um modelo de IA”. Segundo a empresa, a IA tem potencial para ajudar a mitigar de 5% a 10% das emissões globais de GEE até 2030.  

‘Enxugando’ os modelos

Luis Quiles, diretor de Inteligência Artificial da NTT Data, consultoria global de negócios e IA para corporações no mundo inteiro, avalia que a evolução da tecnologia, como sempre acontece, vai trazer as respostas para o novo problema que a própria criou. “Existem muitas pesquisas e projetos sendo realizados com modelos de linguagem que aprendem com menos dados, pouco consumo e bons resultados”, informa Quiles. “Há alguns meses, eu não acreditava que os pequenos modelos [SLM — Small Language Models] poderiam ser potentes, mas já temos casos reais aplicados em projetos e com resultados muito similares aos de referência no mercado”, explica. 

Os SLM são sistemas mais leves, rápidos e ideais para dispositivos com menor poder de processamento ou para tarefas específicas com menos complexidade. Para Quiles, porém, ainda que os LLMs se mostrem potentes, são, de certa forma, “burros”, pois precisam de muita energia para fazer tarefas simples que o ser humano já faz. Na tendência de modelos menores, empresas como Apple, ARM e Qualcomm estão trabalhando na criação de chips com IA para celulares ou outros dispositivos que não pedem um processamento centralizado, com menos transferência de dados e pouca energia para comunicação. Quiles, da NTT Data, é otimista ao acreditar que as soluções virão. Segundo o executivo, é importante que sejam avaliados três pilares: a tecnologia funciona e é interessante? Se a resposta for positiva, surgirão outros dois questionamentos — a tecnologia é boa e será usada com segurança para permitir que todos a utilizem? E, por fim, como aplicar essa ferramenta de forma sustentável?

ESTA REPORTAGEM FAZ PARTE DA EDIÇÃO #483 (OUT/NOV) DA REVISTA PB. CONFIRA A ÍNTEGRA, DISPONÍVEL NA PLATAFORMA BANCAH.

BÁRBARA OLIVEIRA Annima de Mattos
BÁRBARA OLIVEIRA Annima de Mattos