Qual será o legado da COP30? Nos últimos anos, essa foi uma das perguntas que Gilmar Pereira da Silva mais ouviu. Reitor da Universidade Federal do Pará (UFPA) desde outubro de 2024, ele já era vice-reitor da instituição desde 2020, quando todo o frisson da chegada da 30ª Conferência sobre Mudanças Climáticas (COP30) da Organização das Nações Unidas (ONU) ainda era apenas um boato. A confirmação aconteceu em 2023.
Se todas as respostas seguiam na direção dos gargalos de infraestrutura de Belém do Pará, a cidade que sediou a Conferência — a Transparência Internacional calcula que foram gastos R$ 2,8 bilhões para preparar a capital paraense —, Pereira sempre se preocupou com o legado imaterial: na cultura, na educação, na compreensão da vida na Amazônia. “A conferência terá o efeito de mostrar como as visões sobre a floresta são muito etnocêntricas. É um olhar de fora que tem dito como somos e como nos comportamos. Mas, agora, ficou mais evidente que somos nós que precisamos falar como nós vivemos aqui”, destaca.
Confira os principais trechos da entrevista que Silva concedeu à Revista Problemas Brasileiros (PB) logo após o encerramento da COP30.
Foi fascinante. Antes da COP, muita gente gostava de lembrar como existia, de fato, certo desconhecimento de parte da cidade sobre a conferência, mas eu sempre respondia que isso aconteceria em qualquer lugar do mundo. Se a COP fosse na França, na Inglaterra, na Alemanha, o senso comum também não a entenderia. Nesse sentido, Belém recebeu as pessoas muito bem. Todo mundo estava interessado em dialogar, em conversar, em abrir as portas. E houve uma leitura mais restrita ao legado que vai ficar.
O legado real da COP30 foi fazer as pessoas entenderem o que ela significa. A organização repetiu muitas vezes, antes, como precisávamos explicar para as pessoas que se tratava de uma COP, e não de uma Copa [do Mundo]. Foi um aprendizado para todos nós. Sem contar a questão cultural — a cidade foi tomada por exposições, shows, eventos, comunidades mobilizadas etc.
Primeiro, a fala do chanceler alemão não é significativa. Tudo bem que ele é o governante de um dos países mais desenvolvidos do mundo, mas o que ele disse não representa os pensamentos de outros líderes do planeta. Nós recebemos o presidente francês [Emmanuel Macron] na universidade, por exemplo, e ele saiu falando muito bem da experiência que teve. Ele fez questão de visitar a UFPA, pelos acordos que temos com as instituições francesas. Nesse sentido, o que o chanceler da Alemanha disse teve um quê de preconceito com a Amazônia e com a maneira como se vive na floresta.
É interessante como, desde a Rio 92 [quando as COPs começaram], não teve nenhuma COP sem que a Amazônia estivesse no centro do debate climático. Mas, para falar da Amazônia — bem ou mal —, é preciso conhecê-la. Para além disso, qual é a capital brasileira que não tem favela? Que não convive com violência? Que não tem algum gargalo de infraestrutura? São Paulo ou Rio de Janeiro até têm mais hotéis e locais de eventos, mas era importante que a COP acontecesse aqui.
A COP jogou luz sobre os problemas da Amazônia, sem dúvidas, mas eu vejo que o legado mais importante foi mostrar como, além das árvores, dos rios e das bacias, a região tem muita gente — indígenas, quilombolas, cientistas, migrantes. A conferência terá o efeito de mostrar como as visões sobre a floresta são muito etnocêntricas. É um olhar de fora que tem dito como somos e como nos comportamos. Mas, agora, ficou mais evidente que somos nós que precisamos falar como nós vivemos aqui.
Pouca gente sabe que a UFPA é a terceira maior universidade pública do País. São 53 mil estudantes distribuídos em oito campi. O mais distante fica a 950 quilômetros de Belém, em Altamira, que nem sequer é o mais complicado para chegar. Os dois polos da Ilha de Marajó, por exemplo, só são acessíveis por meio de uma viagem de 14 horas de barco. Não tinha como fazer uma COP aqui sem uma entidade desse tamanho e sem todas as pessoas que a fazem funcionar — até porque também recebemos muitos outros eventos aqui, como o Fórum Social Mundial [em 2009].
Temos dois institutos muito importantes para a produção científica sobre o que acontece na Amazônia: o Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (Naea), que tem mais de 50 anos de existência, e o Núcleo de Estudos do Meio Ambiente (Numa), mais recente. Eles têm realizado pesquisas relevantes para a compreensão de fenômenos naturais — por exemplo, sobre as dinâmicas do seguro-defeso do pescado e dos caranguejos, duas atividades pesqueiras de grande importância na Amazônia urbana —, tanto quanto para saberes mais sociais, como, por exemplo, a importância das populações tradicionais para manter a floresta em pé. Esse saber, que hoje se tornou comum, surgiu dos nossos estudos ao longo dos anos. Eu estou convencido de que a academia só vai apreender, de fato, seus objetivos de estudo quando considerar que a ciência só tem sentido se levar em conta esses conhecimentos tradicionais.
Sem dúvida. Pense que, até há alguns anos, a Universidade de São Paulo (USP) era a instituição de ensino do País que mais produzia conhecimento sobre a Amazônia, e agora é a UFPA.* Trata-se de uma conquista extraordinária, e que se explica pela interiorização que fizemos. Mas, além disso, eu noto a mudança nas cidades paraenses. Os municípios que têm campus são bem diferentes daqueles que não têm — a cultura, a forma como as pessoas se relacionam, as escolas têm melhores professores. É revolucionário sair de Belém para formar pessoas em lugares distantes.
O currículo é um espaço de disputa, um espaço contestado. Está nele o que interessa ao Estado, sobretudo. Mas tenho a impressão que é muito difícil que um professor ou professora aborde a Amazônia em sala de aula sem citar as mudanças climáticas e, daí, sem falar da COP. Isso significa que vai acontecer uma transformação curricular, que será o resultado dessa transformação cultural que já está em curso. Isso é, de fato, muito potente.
*Dados da editora Elsevier, publicados em 2023, mostram que, de 2012 a 2021, a USP foi a instituição que mais produziu artigos sobre a Amazônia, com a UFPA em segundo lugar.