Diante de um fã envergonhado por haver poucas pessoas naquele clube da cidade de Pato Branco, no Paraná, na noite fria e chuvosa de 28 de abril de 1991, o cantor e compositor Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior, sempre coerente com suas posições pessoais e políticas, arrematou o último show de sua vida com uma declaração de princípios: “O que importa para mim é a qualidade, não a quantidade”.
No dia seguinte pela manhã, o carro que dirigia em alta velocidade com destino a Foz do Iguaçu, também no Paraná, colidiu com uma camionete, abreviando a existência de Gonzaguinha — assim chamado para diferenciá-lo de seu pai, o Rei do Baião, Luiz Gonzaga do Nascimento, o Gonzagão. Ele foi um dos ícones da geração de artistas que enfrentou a ditadura durante os Anos de Chumbo, período mais repressivo da ditadura militar no Brasil (1964–1985).
Tinha 45 anos, quatro filhos e 294 composições registradas em seu nome, como Não dá mais para segurar (explode coração), sucesso eternizado na voz de Maria Betânia, e O que é, o que é?, autêntico hino à resiliência e à celebração da existência, da parte de quem se considerava “um eterno aprendiz”. A sua poesia misturava alegria e dor, amor e luta, esperança e resistência, na certeza de que a vida “deveria ser bem melhor, e será”.
O morro de São Carlos, no bairro do Estácio, berço do samba no Rio de Janeiro, foi também o primeiro palco do artista. Ali, o sanfoneiro pernambucano recém-chegado, Luiz Gonzaga, conheceu e viveu com a cantora e dançarina carioca Odaléia Guedes dos Santos, que, em 22 de setembro de 1945, há 80 anos, deu à luz um menino.
Ali, Gonzaguinha foi criado pela portuguesa Leopoldina de Castro Xavier, a Dina, e seu marido, Henrique Xavier, o “baiano do violão”, compadre que acompanhava Gonzagão na ronda dos bares, com quem o afilhado aprendeu a tocar o instrumento. Também ali, travou contato com o universo do samba, ao conviver com membros da ala de compositores da Escola de Samba Unidos de São Carlos.
A sua infância foi profundamente marcada por percalços — a morte da mãe tuberculosa, quando tinha apenas dois anos de idade; a recusa da esposa de Luiz Gonzaga, Helena das Neves Cavalcanti, em aceitar o filho que considerava “bastardo”; o fato de o rechonchudo Lua [um dos apelidos de Gonzagão],que era estéril, ter registrado, mas não ser o pai biológico do garoto franzino, e ter largado o filho numa favela; a pergunta mil vezes feita se ele era, mesmo, filho do Rei do Baião; a vida de moleque no morro, carregando sacolas na feira e servindo de “avião” para bicheiros — o que mais tarde ele assumiria no LP Moleque Gonzaguinha e no selo independente Moleque, que criou para produzir os próprios discos.
As dificuldades da vida, ele transformava em aguda consciência social e política, que se tornaria matéria-prima das letras engajadas de suas canções. Fiel às origens, homenageou a mãe nos versos de Odaléia: “Minha cantora esquecida das noites brasileiras/Te amo/Compositora esmagada dessas barras brasileiras/Te amo”. Na música Com a perna no mundo, a mãe de criação é celebrada: “Ô Dina/Teu menino desceu o São Carlos/Pegou um sonho e partiu”.
Na década de 1960, tentou morar com o pai, mas, além da hostilidade da madrasta, lidou com o conservadorismo de Gonzagão, pronto aliado dos militares após o golpe de 1964, postura que mais tarde reveria. Ao entrar na Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Cândido Mendes (Ucam), em 1967, mergulhou no efervescente ambiente estudantil da época e tornou-se um dos fundadores do Movimento Artístico Universitário (MAU), que revelaria outros talentos, como Ivan Lins e Aldir Blanc.
Passou a frequentar as rodas de violão na casa do psiquiatra Aluízio Porto Carreiro, com cuja filha, Ângela, casou-se e teve dois filhos, Daniel e Fernanda. A iniciação artística veio com a participação no Festival Universitário de Música Popular, da extinta TV Tupi. Em 1969, foi finalista com Pobreza por pobreza, letra inspirada nas leituras de Geografia da fome — o dilema brasileiro: pão ou aço (Todavia, 2022), de Josué de Castro. No ano seguinte, conquistou o primeiro lugar com O trem. Nas duas músicas, o caráter reflexivo e pouco comercial da sua produção ficava evidente — letras longas em canções de até sete minutos e meio, mais que o dobro do limite de tempo imposto para tocar nas rádios.
As revelações dos festivais chamaram a atenção da TV Globo, que reuniu os jovens artistas no musical Som Livre Exportação, produzido pelo jornalista Nelson Motta. De vida efêmera, o programa alavancou a carreira de Gonzaguinha, que ganhou, em 1973, as paradas de sucesso com a crítica ácida de Comportamento geral, que ironiza o conformismo do brasileiro, com os versos “Você deve aprender a baixar a cabeça/E dizer sempre: muito obrigado”.
A partir daí, entrou na mira da censura, que chegou a vetar 54 de suas canções nos anos 1970. Conduzido ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops) para prestar esclarecimentos, ele radicalizou a militância em apresentações para estudantes e sindicatos de trabalhadores, ajudando a arrecadar fundos durante as greves na região do Grande ABC Paulista, em 1979.
Na década de 1980, reconciliou-se com o pai e, com ele, saiu pelo País na turnê Vida de Viajante. A dupla Gonzaguinha e Gonzagão rendeu discos e protagonizou um episódio na luta pela democracia — levado pelo filho e por Chico Buarque de Holanda a participar do show em comemoração do 1º de maio de 1981, Luiz Gonzaga estava no Riocentro durante o atentado à bomba promovido por militares da linha dura e foi o encarregado de falar para tranquilizar o público.
Gonzaguinha teve mais duas filhas: Amora, fruto de sua relação com Sandra Pera, do grupo musical As Frenéticas, e a caçula Mariana, filha de Louise Margaret, a Lelete — segunda esposa e viúva, com quem viveu os últimos 12 anos de vida, em Belo Horizonte, Minas Gerais.
Deixou uma obra gravada de 16 LPs, que lhe permitiu viver de sua música e criar os filhos sem fazer concessões, a ponto de ser o único ídolo de sua geração que se recusava terminantemente a dar autógrafos. Achava um absurdo alguém guardar um pedaço de papel escrito por um famoso e, no lugar da assinatura, oferecia um beijo ou dois dedos de prosa.
Presente no enterro, uma década antes de se tornar presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva declarou: “Era um companheiro das esquerdas, dos brasileiros, um homem que estava à disposição em todos os momentos importantes da vida nacional”. Sua visão do Brasil, expressa na música É, ecoa em pleno século 21 — “A gente quer é ser um cidadão/A gente quer viver uma nação”.