A história remonta aos anos 1970, mais precisamente à crise do petróleo de 1973. Mas ela sobrevive até hoje, eternizada como nome de logradouro. Uma lei federal de 2004 deu ao aeroporto de São José dos Campos, no interior de São Paulo, o nome de Professor Urbano Ernesto Stumpf, engenheiro conhecido como “pai do motor a álcool”.
Stumpf se graduou engenheiro aeronáutico na primeira turma do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e ali se tornou professor e pesquisador. “Ao longo de décadas, […] construiu uma carreira brilhante, seja atuando na formação de jovens profissionais, seja conduzindo pesquisas com incansável dedicação”, diz o texto do projeto de lei. O documento ressalta que “desde o começo de sua carreira, abraçou uma ideia que marcou sua vida: a viabilidade do álcool como combustível”. O professor estava de olho na facilidade da produção sucroalcooleira no Brasil e na ideia de independência nacional da volatilidade da cotação do petróleo.
As suas pesquisas começaram ainda em 1951 e duraram até 1980 — um caminho “árduo”, destaca o texto que fundamenta a lei. “Foram cerca de 30 mil horas de ensaios com quase todos os tipos de motores disponíveis”, ressaltando ainda que o pesquisador também atuou como relações públicas da causa, “ministrando palestras no Brasil e no exterior para convencer as pessoas da exequibilidade do projeto”. Na realidade, o motor a álcool não é invenção brasileira, mas em nenhum outro lugar do mundo o material pegou tanto — no setor automotivo — como no Brasil. Segundo a engenheira mecânica Aline Sacchi Homrich, doutora pela Universidade de São Paulo (USP) e professora na Universidade Presbiteriana Mackenzie, iniciativas nesse sentido foram realizadas muito antes. “Entretanto, o carro movido a álcool, em grande escala, é uma inovação brasileira, especialmente porque aqui o produto alcançou condições distintivas para ser amplamente comercializado”, ressalta.
Os contextos histórico e econômico têm tudo a ver com o sucesso do carro a álcool por aqui: a crise mundial do petróleo em 1973 aconteceu no momento em que o preço do açúcar estava em baixa. “Muitos países optaram por diminuir a dependência do petróleo importado, o que alavancou a busca por alternativas para a demanda crescente de combustíveis fósseis”, conta a professora. No caso do Brasil, como ressalta a engenheira, 80% do petróleo consumido àquela época era de origem estrangeira. “Diferentemente dos Estados Unidos, que optaram por aumentar a produção interna de petróleo, o Brasil adotou a estratégia de buscar fontes alternativas”, explica Aline.
Em 1975, foi lançado oficialmente pelo governo federal o Programa Nacional do Álcool (Proálcool). “As intenções iniciais eram de evitar os royalties pagos na fabricação dos motores importados e projetados no exterior e viabilizar o uso em grande escala de um combustível derivado da biomassa”, conta a engenheira. Naquele período de ditadura militar, o discurso nacionalista e ufanista era preponderante, um ingrediente a mais, verdadeiro combustível na corrida pelo motor ideal. “Inicialmente, buscou-se reduzir o consumo de gasolina, adicionando álcool anidrido à substância, diluindo-a na proporção de 20%. Até que tivéssemos domínio sobre a adaptação dos motores para uso exclusivo de etanol, o que ocorreu em 1978”, explica Aline. “Foi uma decisão político-econômica, pois o preço do açúcar no mercado internacional também vinha decaindo rapidamente.” Isto é: usar a cana-de-açúcar para produzir álcool, e não acúcar, era conveniente. O processo gerou muito lucro ao Agronegócio, como mostram os dados levantados pela professora: a produção alcooleira, que era de 600 milhões de litros por ano em 1975, saltou para 12,3 bilhões de litros em 1986.
A visão sobre o uso do álcool obtido a partir da cana-de-açúcar era muito positiva. Em artigo publicado pela revista Science em 1978, o combustível foi definido como “energia solar líquida”. Segundo Aline, esse entendimento vem do fato de que o produto carrega uma boa “eficiência no balanço de energia e custos”. Contudo, ela admite que, hoje, a questão é contraditória. “No que tange à ecologia, algumas condições de contorno precisam ser evidenciadas: o etanol é uma fonte de energia renovável, o que significa que a sua produção não contribui diretamente para o esgotamento dos recursos naturais, como acontece com os combustíveis fósseis”, exemplifica a professora. “Adicionalmente, apresenta vantagens consideráveis quanto às emissões de Gases de Efeito Estufa (GEEs).”
Por outro lado, o plantio da cana exige “largas extensões de terra, uso intensivo de água e, muito frequentemente, uso de fertilizantes e pesticidas que podem influenciar negativamente o equilíbrio ambiental”, salienta. Não raras vezes, é uma agricultura associada ao desmatamento. “Outro desafio enfrentado é a baixa eficiência energética dos carros a álcool em comparação aos veículos a gasolina, o que pode levar a uma maior pegada de carbono por causa da necessidade de maior consumo”, acrescenta a engenheira.
O setor ganhou um novo boom em 2003, com o lançamento dos chamados carros flex, que aceitam tanto etanol quanto gasolina. Quando a tecnologia completou 20 anos, no ano passado, a União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia (Única) anunciou que, no período, o uso de etanol evitou a emissão de mais de 620 milhões de toneladas de dióxido de carbono para a atmosfera. No entanto, o uso do álcool como combustível está em queda, como mostram dados da consultoria Datagro publicados neste ano. Embora a maioria dos veículos vendidos no Brasil seja flex, somente 30% da frota usam o álcool. Em 2018, eram 41,5%. Hoje, a nova fronteira nos motores automotivos é a eletricidade. Será que esse sucesso brasileiro vai ficar, definitivamente, para trás?