Mais de 10% das espécies de cobras e serpentes do mundo vivem no Brasil — são 321 das 2,93 mil conhecidas. Considerando que 36 delas são peçonhentas, faz sentido que o tratamento contra o veneno desses animais seja uma preocupação antiga. De acordo com dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificações (Sinan), entre 2014 e 2015, foram registrados mais de 275 mil casos de acidentes com animais venenosos no Brasil.
Se o início da terapia antiofídica é creditado ao médico francês Albert Calmette (1863–1933), preocupado com ataques de najas na Indochina, a versão nacional, desenvolvida pelo médico brasileiro Vital Brazil (1865–1950), foi inovadora — ele foi o primeiro a entender que não era possível utilizar o mesmo medicamento para qualquer tipo de veneno.
“Vital Brazil não inventou o soro antiofídico, mas foi o primeiro a produzi-lo por meio da injeção de venenos de jararacas e cascavéis em cavalos para obter os anticorpos específicos, que são a base dos antídotos”, explica a médica Fan Hui Wen, diretora do Núcleo de Produção de Soros do Instituto Butantan e autora do livro Animais peçonhentos no Brasil (Sarvier, 2009). Segundo a especialista, esse princípio da especificidade foi estabelecido por Brazil, que percebeu que o soro contra jararaca não neutralizava o envenenamento por cascavel e vice e versa.
Isso porque o soro é produzido contra as toxinas dos venenos de cada espécie utilizados na imunização dos cavalos que resultam em anticorpos específicos. Portanto, o soro antiofídico também não é capaz de combater as toxinas de outros animais peçonhentos, como escorpiões e aranhas.
Fan Hui esclarece, ainda, que, no início do século 20, as bases imunológicas ainda não estavam suficientemente firmadas para essa conclusão, que hoje parece óbvia. O francês Calmette — que desenvolveu, antes de Brazil, um soro contra envenenamentos por serpentes na Ásia — acreditava que o antídoto poderia servir para tratar acidentes ofídicos em qualquer parte do mundo. O pressuposto equivocado foi derrubado pelo médico brasileiro em seus experimentos.
Calmette começou a terapia em 1895 e, três anos depois, Brazil chegou às próprias conclusões. Pouco tempo depois, em 1901, os primeiros lotes de soro antiofídico produzidos pelo Butantan — instituto fundado por Brazil — começavam a ser distribuídos no País.
A produção do antídoto depende não apenas das cobras, mas também dos cavalos. Isso porque o veneno das principais espécies de serpentes é injetado nos equinos, em quantidades diluídas e inofensivas a eles. Essas injeções funcionam como vacinas, estimulando o sistema imunológico dos animais para que produzam anticorpos específicos, os chamados antígenos. “Após algumas semanas, a presença de anticorpos nos cavalos atinge níveis satisfatórios. O plasma, parte líquida do sangue, é retirado em quantidade proporcional ao peso do animal”, detalha Fan Hui.
A partir desse momento, o plasma é processado industrialmente para que se obtenha um produto com alto grau de pureza. Por fim, o soro é envasado, resultando numa solução estéril dividida em doses de 10 mililitros por frasco. Os testes de controle de qualidade são realizados em várias etapas da produção, e todo o processo é monitorado para atender às normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Atualmente, o Butantan produz 400 mil frascos de antiofídicos todos os anos. Há soros específicos contra os venenos de jararaca, cascavel, coral-verdadeira e composições mistas. “Em nenhum lugar do mundo o soro é distribuído gratuitamente, e o tratamento disponibilizado com tanta facilidade, como no Brasil”, enfatiza, em artigo científico publicado em 2017, o médico-veterinário Luis Eduardo Ribeiro da Cunha, da diretoria científica do Instituto Vital Brazil, sediado em Niterói, no Rio de Janeiro.
A produção brasileira é projetada para atender toda a demanda nacional. Hoje, no Brasil, há quatro laboratórios produtores de soros para o Sistema Único de Saúde (SUS), todos públicos, vinculados a governos estaduais. Além do Butantan, em São Paulo, o medicamento também é produzido no Instituto Vital Brazil, no Rio; na Fundação Ezequiel Dias (Funed), em Minas Gerais; e no Centro de Pesquisa e Produção de Imunobiológicos (CPPI), no Paraná.
O soro antiofídico funciona por meio da neutralização do veneno que está na circulação sanguínea de alguém picado por uma serpente. Quando o antídoto se liga às toxinas do veneno, a progressão do envenenamento deixa de acontecer. Por isso, a médica Fan Hui enfatiza que quanto mais rápida for a administração do soro, menor a chance de evoluções graves do envenenamento, que vão de sequelas a óbitos.
É importante ressaltar também que os cavalos mantidos pelo Butantan, fundamentais nesse processo, “são muito bem tratados”, com “todos os procedimentos realizados para garantir o bem-estar e a saúde dos animais”, conta Fan Hui. Afinal, de certa forma, eles são quase tão estrelas dessa invenção quanto Calmette e Brazil.