As fake news estão no cotidiano de qualquer pessoa que acessa a internet, especialmente as redes sociais. Fenômeno global, a disseminação de notícias falsas, que traz riscos à saúde coletiva e às democracias, é o principal alimento de algo maior: a desinformação. Esse item encabeça a perspectiva de risco de curto prazo do Relatório de Riscos Globais do Fórum Econômico Mundial pelo segundo ano consecutivo, superando os temores com eventos climáticos extremos e confrontos geoeconômicos. No cenário de risco de longo prazo, as preocupações ambientais estão na frente.
A 20ª edição do relatório, produzido pelo fórum em parceria com a Marsh McLennan e a Zurich, reuniu percepções de mais de 900 especialistas sobre os riscos globais em três períodos de tempo: prazo atual ou imediato em 2025, curto e médio prazos até 2027 e longo prazo até 2035.
A desinformação não é exatamente uma novidade, pois sempre houve mentiras em campanhas políticas, ou falsas narrativas para vender certos produtos e serviços, segundo explica Daniela Machado, coordenadora do EducaMídia, programa de educação midiática do Instituto Palavra Aberta. “A velocidade e o alcance são os novos fatores que tornam o fenômeno mais desafiador”, afirma. E é essa amplitude que faz com que a questão deixe de ser um problema individual, ou de grupos específicos, e passa a atingir a sociedade como um todo.
A vacinação é um exemplo clássico, sempre mencionado por especialistas ao abordarem o dano generalizado que a desinformação é capaz de gerar. “Há uma série de discussões, sem qualquer base científica, que associam vacinas a outras doenças. A disposição da população para se vacinar vem diminuindo, e pesquisas apontam que as campanhas contra as vacinas são uma das razões”, reforça Daniela. Doenças antes erradicadas voltaram a circular, colocando em risco bebês ainda não vacinados e pessoas imunodeprimidas. Neste caso, há ainda o custo para o bolso do contribuinte, pois muitas vezes as autoridades têm de gastar tempo e recursos para combater falsas narrativas.
Não há receita de bolo — ou lista de boas práticas — para não cair em uma narrativa de desinformação. “À medida que as tecnologias se tornam mais sofisticadas e acessíveis, recomendações como ‘observe se o conteúdo tem uma aparência tosca ou erros de português’ se apresentam insuficientes para dar conta do grau de profissionalização de quem está disposto a espalhar inverdades”, afirma Daniela.
Ainda assim, é comum que campanhas com informações falsas se utilizem de um sentido de urgência e despertem sentimentos como a raiva para engajar as pessoas. “É bom que tenhamos acesso à informação por diversas fontes, mas isso exige disposição para tratar a informação de uma maneira mais crítica”, defende a coordenadora do EducaMídia. Para a especialista, é preciso sair do papel de consumidor passivo de informação e questionar quem é a fonte de determinado conteúdo, se está claro quem o produziu e divulgou e, ainda, a quem aquilo atende.
As ferramentas de Inteligência Artificial (IA) são amplamente usadas em campanhas de desinformação, pois facilitam a criação e a propagação de material enganoso. No entanto, o trabalho de desmentir esses conteúdos continua sendo quase “artesanal”, pois é preciso que um ser humano faça pesquisas em várias fontes para isso. E, a parir daí, a velocidade de disseminação do desmentido dificilmente será a mesma da fake news que o motivou. “É impossível separar, com segurança, um texto produzido por um humano ou por uma IA generativa. Em breve, o mesmo acontecerá com as imagens. O ideal seria que o que fosse gerado pela IA tivesse uma espécie de marca d’água, o que depende das empresas — e isso dificilmente acontecerá”, afirma George Darmiton Cavalcanti, professor no Centro de Informática da Universidade Federal de Pernambuco (CIn-UFPE), que trabalha para criar um sistema que automatize a checagem de fatos.
Mesmo que fosse possível automatizar a checagem, ainda seria preciso que as pessoas tivessem interesse em confirmar a veracidade do que recebem. “Existem informações que já foram checadas, desmentidas e, depois de um tempo, voltaram a circular”, ressalta o professor. E não há solução puramente tecnológica que possa deter as campanhas de desinformação. “O possível, hoje, é bloqueio de aplicativos. Fora isso, não há viabilidade”, diz Cavalcanti. Por isso, ele defende que a solução contra as fake news passa, necessariamente, pela educação midiática tanto de crianças quanto de adultos.
Antes do uso massivo das redes sociais, quem divulgava informação falsa costumava se retratar ou tirar os conteúdos do ar quando confrontadas, afirma Sérgio Amadeu, sociólogo, especialista em redes sociais e inclusão digital e professor na Universidade Federal do ABC (UFABC). “Todos podem errar, mas existia uma ética. As pessoas, independentemente das profissões, não queriam se comprometer com o erro”, lembra ele.
Isso começou a mudar a partir de 2012, quando uma força política nos Estados Unidos, a “direita alternativa” (do inglês alt-right), decidiu fazer da desinformação uma estratégia política para assumir o poder. “Não se trata mais de equívocos, mas de um processo sistemático de suspender os parâmetros da realidade para criar o caos informacional”, explica o professor.
Uma estratégia comum é negar um fato que claramente aconteceu, alegando que se está apenas promovendo o debate acerca do contraditório. Exemplo disso são os grupos políticos que negam a existência do Holocausto ou os defensores da Terra plana. “É possível discutir as causas e os efeitos, mas um suposto debate sobre se o Holocauto existiu é apenas uma ação para validar a negação da história”, afirma Amadeu. Segundo ele, as forças políticas que atuam dessa forma defendem que seus valores e crenças valem mais que a realidade dos fatos.
Além de negar o óbvio, a desinformação pode ainda descontextualizar um acontecimento, retirando uma imagem ou frase de seu contexto original e utilizando-a em outro. “Hoje, há um esquema profissional para isso, que vai se constituindo em um gênero de discurso, com processos retóricos e de persuasão”, explica Roseli Figaro, professora na Escola de Comunicação da Universidade de São Paulo (ECA-USP). De acordo com ela, para surtir efeito, é importante vincular a descontextualização a estereótipos e preconceitos enraizados na população, como o machismo, o racismo, a objetificação da mulher e a desqualificação de pessoas de minorias étnicas.
Roseli exemplifica essa estratégia com as fake news sobre a “mamadeira de piroca”, que circulou em 2018. O fato real era que o governo discutia, à época, um material didático de educação sexual para as escolas. Mas fizeram um deslocamento: um conteúdo pedagógico virou um objeto, uma mamadeira, algo que alimenta os mais frágeis, os bebês. “É uma metáfora elaborada, feita por pessoas muito bem formadas, que traz uma capacidade de síntese a partir de estereótipos de sexualidade enraizados na cultura popular”, explica a professora.
Como campanhas de desinformação se aproveitam do sistema de crenças pessoais, cada um deve suspeitar, sobretudo, das informações que confirmam as próprias convicções. Ainda assim, os especialistas ouvidos pela PB defendem que não há solução individual para o fenômeno. “Tem de haver leis de regulamentação das plataformas. A ideia de liberdade de Elon Musk é que se alguém tem dinheiro para impulsionar um conteúdo, qualquer coisa pode ser dita. O que ele defende é muito próximo da violência. Na liberdade democrática, a liberdade deve estar acima dos poderes”, afirma Sérgio Amadeu.
Embora cada um possa (e deva) lançar mãos da informação para evitar a propagação de desinformação, o problema não pode ser visto de forma moralista, defende Roseli. “A desinformação não é culpa do meu tio ou da vizinha. Eles são vítimas que caem numa rede que se expande. É um problema político e econômico que desestrutura laços sociais e instituições”, reforça a professora. Ela explica, ainda, que há uma intencionalidade por trás da desinformação, pois pessoas ganham dinheiro e poder com isso. “A desinformação atrai audiência, gera cliques e monetiza conteúdos — e os donos das plataformas dizem que não têm nada a ver com isso, mas seguem lucrando”, conclui.