No contexto da crise climática, o diálogo entre os conhecimentos científico ocidental e indígena é essencial para a conservação da Amazônia e para o futuro sustentável do planeta. A integração dos sistemas de conhecimento pode garantir uma ciência mais holística, que entenda a conexão indissociável entre cultura e natureza e que, portanto, reconheça a contribuição dos povos originários para a reabilitação dos ecossistemas.
É o que aponta artigo científico publicado na revista Science em dezembro por pesquisadores indígenas dos povos Tuyuka, Tukano, Bará, Baniwa e Sateré-Mawé, em parceria com não indígenas, vinculados a projeto do Brazil LAB, da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Os cientistas participantes também têm vínculo com instituições brasileiras, como as universidades federais de Santa Catarina (UFSC) e do Amazonas (Ufam).
O artigo defende a integração urgente entre os saberes, considerando a contribuição das teorias e práticas de povos indígenas há, pelo menos, 12 mil anos, para a conservação e a restauração do meio ambiente — além de elegerem a Amazônia como um terreno fértil para promover esse diálogo. O trabalho sintetiza conhecimentos dos indígenas do Alto Rio Negro, território localizado no Estado do Amazonas.
Para esses povos, o mundo pode ser organizado em três domínios: terrestre, aéreo e aquático, os quais são ocupados não só pelos humanos, mas por outros seres, como animais, plantas e rios, e pelos chamados “outros humanos” — ou “encantados” —, que já habitavam o mundo antes de nós e que são consultados pelos especialistas indígenas, os chamados pajés. Para que as pessoas possam acessar elementos da natureza, é fundamental solicitar permissão e negociar com os outros seres presentes nesses domínios, respeitando as práticas e rituais que mantêm o funcionamento dessa rede cosmopolítica.
“Uma das principais lições dos conhecimentos indígenas do Alto Rio Negro é a compreensão de que as vidas se estabelecem em conexão. Nada existe sozinho, tudo está relacionado — e compreender essa rede de relações entre todos os seres é uma das chaves para a sustentabilidade”, explica Carolina Levis, pesquisadora da UFSC e primeira autora do artigo.
De acordo com ela, a cosmovisão indígena pode auxiliar na desconstrução da visão colonialista que há séculos explora a Amazônia. “Enquanto o pensamento ocidental está enraizado em visões utilitaristas e antropocêntricas da natureza, os povos indígenas amazônicos entendem que essa natureza e seus elementos também são dotados de qualidades de pessoas e tudo faz parte de um sistema integrado”, comenta.
“Escrevemos esse texto para dar voz também àqueles que não têm, bem como fazer ecoar vozes de quem não consegue reagir à destruição de seus territórios”, explica Justino Sarmento Rezende, pesquisador na Ufam e um dos autores indígenas do artigo. “Outros seres também são viventes e habitantes dos territórios; ninguém consulta os animais antes de invadir a casa deles e seguir destruindo. Uma vez que considerarem os outros seres como relacionados a nós, teremos de fazer o papel de diplomatas, pois eles não estão sendo ouvidos e entendidos. Vamos fazer um pouco desse papel de representá-los. Assim como os povos indígenas, os outros seres também estão silenciados”, continua o pesquisador.
Rezende defende uma ciência que agregue os diferentes saberes em defesa da Terra e da relação recíproca entre todas as espécies. “Um único sistema de conhecimento não será suficiente para enfrentar a emergência climática. É necessário o diálogo entre múltiplos conhecimentos. Precisamos sentar todos à mesma mesa para decidir o que podemos fazer e projetar estratégias, soluções e inovações”, alerta.
Os pesquisadores apontam ações e práticas dos povos originários que podem ser somadas às pesquisas científicas, como a influência do movimento das constelações e dos ciclos do planeta na produção de alimentos. De acordo com Carolina Levis, uma das principais conclusões para a eficiência da conservação do bioma é a inclusão respeitosa de líderes e especialistas indígenas em processos de investigação e tomada de decisão.
O artigo reconhece o desafio de fazer valer o status de ciência ao conhecimento dessa população, já que “os espaços de formação dos especialistas não estão nas universidades; os ‘laboratórios’ indígenas estão nas próprias aldeias”, lembra Carolina. Dessa forma, avaliam os autores, é também importante que universidades e instituições de pesquisa criem espaço para a ciência indígena, valorizando e respeitando as visões de mundo dos povos originários.
Em carta publicada na Science em 2022, divulgada à imprensa pela BORI na época, estudiosos do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), da Universidade Federal do Pará (UFPA), e demais parceiros já alertavam para os riscos de projetos de lei que expunham as terras indígenas da Amazônia em território brasileiro a atividades como mineração, produção de soja e extração de madeira.
Além dos problemas ambientais que acarretam, afetando a resiliência dos ecossistemas, essas interferências prejudicam a sobrevivência das culturas indígenas. Isso acontece porque os modos de vida dos povos originários estão diretamente relacionados à sua interação com os elementos naturais, como os rios e as florestas. Assim, é fundamental que os saberes indígenas sejam considerados pela ciência ocidental, bem como que essa confluência de conhecimentos seja também abraçada em instâncias como a formulação de políticas públicas.
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