80 anos pela arte e contra o preconceito

01 de novembro de 2024

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“Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela.” A tese, da professora e filósofa estadunidense Angela Davis, tem comprovação prática na vida e na carreira de duas artistas brasileiras, que chegam aos 80 anos enfrentando e superando o racismo e o patriarcalismo arraigado no Brasil, nação que jamais acertou as contas com seu brutal passado escravagista.

Negras e de origem humilde, Zezé Motta e Leci Brandão sofreram e enfrentaram preconceitos para se afirmarem. Uma como atriz internacionalmente consagrada em mais de 70 filmes. A outra como cantora, compositora e parlamentar, que atualmente exerce o quarto mandato consecutivo como deputada do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp).

Eterna Xica?

“Ué, não sabia que para fazer papel de empregada precisava de curso”, ouviu a adolescente Zezé Motta de uma vizinha ao conseguir uma bolsa de estudos no Tablado, conceituada escola de teatro fundada pela escritora e dramaturga Maria Clara Machado, em 1951, no Rio de Janeiro. Não foi fácil superar esse estigma para a menina Maria José Motta de Oliveira, nascida em 27 de junho de 1944, em Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro. Filha de uma costureira e de um motorista de ônibus, também professor de violão, estudou dos 6 aos 12 anos num colégio interno no bairro carioca de Botafogo, mantido pelo Asilo Espírita João Evangelista, de linha kardecista. Em casa, enquanto ajudava a mãe nas costuras, era incentivada pelo pai a tornar-se cantora, profissão que acabou assumindo em paralelo à trajetória de atriz, com dez discos gravados.

O seu destino começou a tomar forma ao morar na Cruzada São Sebastião, conjunto habitacional fundado por Dom Helder Câmara para acolher moradores de uma favela que existia entre os bairros do Leblon e de Ipanema. Ali, Zezé estudou no Colégio Santos Anjos, centro de resistências política e cultural, já em plena ditadura militar, onde viveu as primeiras experiências no palco, em espetáculos encenados pelo grêmio recreativo.

Indicada para a bolsa no Tablado, destacou-se a ponto de ser selecionada para o elenco de Roda Viva, peça escrita por Chico Buarque de Holanda e dirigida por José Celso Martinez Corrêa, que se tornou símbolo da resistência artística nos anos de chumbo. Zezé estava entre os atores espancados em São Paulo, pelo grupo de extrema direita autointitulado Comando de Caça aos Comunistas (CCC), após uma apresentação.

Em 1969, em viagem aos Estados Unidos com o Teatro de Arena, de Augusto Boal, observou com surpresa que os afro-americanos andavam de cabeça erguida. “Não tinham essa postura subserviente que eu sentia no Brasil e em mim mesma”, ressalta Zezé. Desde então, deixou de alisar os cabelos e aposentou a peruca lisa que usava para se apresentar. “Nas ruas do Harlem, eu comecei a me aceitar como negra”, afirma. Era exatamente uma atriz negra que o diretor Cacá Diegues procurava, em 1976, para encarnar Xica da Silva, mulher escravizada e alforriada que ascendeu social e politicamente em Minas Gerais, no século 18. O sucesso arrebatador do filme — que levou mais de 3 milhões de brasileiros ao cinema e rendeu a Zezé prêmios e projeção internacional — transformaria a atriz em símbolo sexual, em razão do erotismo da personagem. Aos que a criticaram por isso, respondeu: “Gente, não cobrem de Xica da Silva atitudes de Angela Davis”.

Apesar do êxito, ela teve de amargar inúmeros papéis de empregada, sobretudo na televisão. “Foram tantas que, quando fui enredo de escola de samba, havia uma ala só de domésticas”, conta na biografia Muito prazer, de autoria de Rodrigo Murat. O título refere-se à música Muito prazer, Zezé, composta para ela por Rita Lee e Roberto de Carvalho.

Reconhecida como uma das lideranças do movimento negro brasileiro, Zezé Motta é presidente de honra do Centro de Informação e Documentação do Artista Negro (Cidan) e já foi superintendente da Igualdade Racial do Governo do Estado do Rio de Janeiro.

Feita de samba e política

Em 2010, dona Lecy de Assumpção Brandão (1922–2019) recebeu o seguinte telefonema: “Mãe, a senhora varreu sala de aula, moramos em escolas públicas, mas, hoje, a sua filha foi eleita deputada pelo Estado de São Paulo. Obrigada por tudo, minha mãe!”. Leci Brandão da Silva nasceu em 12 de setembro de 1944, em Madureira, bairro da zona norte do Rio de Janeiro, berço das escolas de samba Portela e Império Serrano. Foi criada em outro reduto de bambas, a Vila Isabel, de Noel Rosa e Martinho da Vila. E tornou-se, aos 27 anos, a primeira mulher a integrar a ala de compositores da Mangueira, escola de Cartola e Nelson Cavaquinho. “Compus um samba de terreiro para ser aprovado. Foi uma universidade na minha vida”, assegura, referindo-se à convivência com sambistas consagrados, como Nelson Sargento.

Descoberta em uma roda de samba pelo jornalista e crítico musical Sérgio Cabral, gravou, em 1974, o primeiro de seus 24 álbuns entre LPs e CDs, lançados ao longo de 50 anos de carreira. No disco Questão de gosto, de 1976, a canção de sua autoria, As pessoas e eles, motivada por um ato de violência homofóbica por ela presenciado, foi uma das primeiras a falar abertamente de homossexualidade, nesses versos: As pessoas não entendem/Porque eles se assumiram/Simplesmente porque eles descobriram/Uma verdade que elas proíbem”.

Na década de 1980, explodiram os sucessos Isso é fundo de quintal, As coisas que mamãe me ensinou, e Zé do Caroço, autêntico hino da resiliência da cultura e das comunidades populares, com a qual costuma encerrar os próprios shows. Inspirada na história real de José Mendes da Silva, líder comunitário do Morro do Pau da Bandeira, em Vila Isabel, a canção foi recusada pela gravadora PolyGram, o que levou Leci a romper o contrato e passar cinco anos sem gravar, até que a Discos Copacabana aceitasse o conteúdo crítico da composição. “Quando entrei para o PCdoB, eles disseram: ‘Você era comunista e não sabia. Olhe as suas letras. Suas músicas falam de problemas sociais’”, ela diz, relembrando o diálogo com o deputado federal Orlando Silva (PcdoB/SP), que lhe fez o convite.

Quatro décadas antes das pautas identitárias virarem moda, Leci Brandão assumiu a sua orientação sexual em entrevista ao jornal alternativo Lampião da Esquina. Primeira mulher negra a cumprir quatro mandatos na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), o seu gabinete é conhecido como “quilombo da diversidade”, por sua defesa da igualdade racial, das religiões de matriz africana e das populações indígenas, quilombolas e LGBTQIA+.

Com a força dos orixás, Zezé Motta e Leci Brandão inserem-se no resgate de bases étnicas apagadas à força na diáspora africana, para que as mulheres negras possam “descolonizar nossos saberes e identidades”, como preconizou a filósofa e antropóloga Lélia Gonzalez.

Herbert Carvalho Annima de Mattos
Herbert Carvalho Annima de Mattos