Três atos da luta antirracista

19 de julho de 2024

Em 2024, três efemérides evocam e preservam a memória da luta contra o racismo, a qual teve o ápice no século passado por meio de três figuras emblemáticas que deixaram um legado fundamental para o movimento negro internacional e brasileiro, na busca incessante por justiça e reparação social.

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Em primeiro lugar, destaca-se o pastor estadunidense Martin Luther King Jr., líder do movimento que culminou na Lei dos Direitos Civis nos Estados Unidos, promulgada em 1964 e que proibiu a odiosa discriminação racial que vigorava nos transportes públicos, escolas e restaurantes no sul do país. Do outro lado do Atlântico, em 1994, Nelson Mandela foi eleito presidente da África do Sul após 27 anos de pela luta contra o regime de segregação racial, o apartheid. Tanto Luther King como Mandela tiveram as trajetórias coroadas com o Prêmio Nobel da Paz. Finalmente, há 110 anos nascia Abdias Nascimento, indicado ao Nobel da Paz em 2010 pela vida dedicada à defesa da cultura e dos direitos dos negros brasileiros e dos afrodescendentes do mundo todo. 

No início dos anos 1960, imperava, no sul dos Estados Unidos, não apenas uma legislação de segregação racial, mas todo um aparato para sustentar a supremacia branca, destinado a manter vedado, à população afro-americana, o direito ao voto. A situação começa a mudar quando Rosa Parks se recusa a ceder, dentro de um ônibus, o assento a um homem branco, como determinava a lei de Montgomery, no Estado do Alabama. No boicote ao transporte público na cidade, destaca-se Luther King, que, a partir daí, assume a liderança do Movimento pela Liberdade e os Direitos Civis, com a tática baseada na desobediência civil e na resistência não violenta. 

Os Freedom Rides — ônibus com passageiros brancos e negros que voluntariamente se sentavam juntos — e a ocupação dos restaurantes segregados por afro-americanos, que se mantinham impassíveis ante as agressões dos brancos e da polícia, culminam, em agosto de 1963, com a marcha de 250 mil pessoas em Washington, onde Luther King profere o famoso discurso “Eu tenho um sonho”. Naquele mesmo ano, o presidente John F. Kennedy envia, ao Congresso, a Ata dos Direitos Civis — que, após o assassinato de Kennedy, é assinada em 2 de julho de 1964 pelo sucessor, Lyndon B. Johnson.  

Também assassinado em abril de 1968, aos 39 anos, Luther King despertou a consciência da comunidade preta para os próprios direitos em uma luta que seria assumida pelos Panteras Negras, cuja proposta de ensino da história dos negros nas escolas se tornou realidade em diversos países, inclusive no Brasil.  

Já a palavra “apartheid” — que significa “separação” em africâner, língua derivada do holandês falada pela elite branca da África do Sul — resumia as características segregacionistas do regime que, desde 1948, oprimia a maioria negra do país. Durante os períodos de vigência do sistema, era proibido aos não brancos frequentar os mesmos lugares que os brancos, ter a posse de terras, circular livremente pelo território e participar de decisões políticas. A principal organização de representação dos negros e de combate ao apartheid foi o Congresso Nacional Africano (CNA), fundado em 1912, que, a princípio, adotava uma estratégia de resistência não violenta e de diálogo. 

Em 1960, porém, durante manifestação pacífica contra uma lei que restringia a circulação de trabalhadores negros em áreas de brancos, 69 pessoas foram mortas pela polícia. O Massacre de Sharpeville, como ficou conhecido, foi um divisor de águas. No plano internacional, despertou a consciência mundial para o que ocorria no país, enquanto, internamente, alas radicais assumiam o controle do CNA. Condenado em 1964 à prisão perpétua por participar de movimentos armados, Nelson Mandela manteve a liderança da luta antirracista dentro do cárcere. Repudiado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e retirado da Assembleia Geral, em 1990 o regime liberta Mandela, que, quatro anos depois, assume a presidência da África do Sul nas primeiras eleições com a participação de eleitores negros.

Luta brasileira

Nascido em 1914 em Franca, no interior de São Paulo, Abdias Nascimento foi ator, dramaturgo, poeta, escritor, artista plástico, professor universitário, político e ativista dos direitos das populações pretas. Economista e sociólogo, doutor honoris causa e professor de diversas universidades brasileiras, dos Estados Unidos e da África, dedicou a quase centenária trajetória a desvendar e combater o “crime perfeito” do racismo brasileiro, tão pérfido e dissimulado quanto arraigado às estruturas sociais de uma nação. Intelectual refinado, não sucumbiu à academia para poder construir outros saberes destinados a dar visibilidade à cultura dos povos negros do Brasil. Um de seus maiores legados foi o Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado no Rio de Janeiro em 13 de outubro de 1944. 

Até então no teatro brasileiro, o negro era sempre inserido em posição inferior, de empregado ou subalterno, o que começa a mudar com O imperador Jones, texto do dramaturgo estadunidense Eugene O’Neill. Com atores recrutados entre operários, empregados domésticos, favelados sem profissão definida e o próprio Nascimento no papel-título, a peça estreou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro no dia 8 de maio de 1945, data que, para maior consagração, coincidiu com a vitória das forças aliadas contra o nazifascismo, na Segunda Guerra Mundial. Em 1968, no auge da repressão da ditadura instalada quatro anos antes, Nascimento decide se exilar, inicialmente, nos Estados Unidos, onde foi acolhido pelos Panteras Negras, e, posteriormente na Nigéria. Durante esse período, desenvolve como proposta de orientação política, para os movimentos pretos das Américas e da África, os princípios do quilombismo e do pan-africanismo.        

De volta ao Brasil, em 1982, elege-se deputado federal pelo PDT de Leonel Brizola. Apontando o 13 de maio como “mentira cívica”, propõe o dia da morte de Zumbi dos Palmares, 20 de novembro, como feriado nacional e Dia da Consciência Negra. No século 21, Brasil e África do Sul são líderes mundiais em desigualdade, enquanto o nosso país e os Estados Unidos ainda evidenciam a violência estatal contra a população negra.

Segue atual o trecho do poema de Abdias Nascimento, Padê de Exu Libertador: “Teu punho sou/ Exu-Pelintra/quando desdenhando a polícia/defendes os indefesos/vítimas dos crimes/do esquadrão da morte/punhal traiçoeiro/da mão branca/somos assassinados/porque nos julgam órfãos (…)”. 

ESTA REPORTAGEM FAZ PARTE DA EDIÇÃO #481 IMPRESSA DA REVISTA PB. ACESSE A VERSÃO DIGITAL, DISPONÍVEL NA PLATAFORMA BANCAH.

Herbert Carvalho Annima de Mattos
Herbert Carvalho Annima de Mattos