Entre o teto e o arcabouço

04 de agosto de 2023

Em meio à tramitação histórica da Reforma Tributária no Congresso, outra pauta econômica entrará na agenda pública a partir desta semana: o novo arcabouço fiscal, proposto pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para substituir o teto de gastos, em vigor desde 2017. Recentemente, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, disse que pretende levar o texto ao plenário para votação final até o último dia de agosto e, então, direcioná-lo à sanção do Executivo.

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Assim como já havia sido com o teto de gastos, cujo principal fiador era o então presidente Michel Temer, a proposta atual se adapta às diferentes percepções da economia brasileira — dualidade que ficou equivocadamente marcada na divisão entre responsabilidades fiscal ou social.

De um lado, críticos da limitação das despesas sociais do governo entendem que o projeto representa um avanço institucional. De acordo com eles, qualquer medida de regulação do orçamento público deve considerar a condição desigual de acesso aos recursos no Brasil e, por isso, a necessidade de investir em serviços e programas sociais às famílias mais pobres. Esse é o argumento da própria equipe econômica do presidente Lula, que prometera, já durante a campanha eleitoral, derrubar a lei em vigor e substituí-la por outra mais flexível.

De outro, especialistas apontam que o novo arcabouço fiscal significa um retorno aos gastos públicos desenfreados. Esses profissionais sugerem que, a partir de agora, as despesas pretendidas pelo governo vão enforcá-lo, fazendo com que seja preciso subir a carga tributária para conseguir levá-lo a cabo. O teto de gastos, nesse sentido, funciona como um impedimento eficaz desse cenário.

No projeto do atual, há a previsão de duas limitações para o orçamento público: o primeiro é permitir uma alta nos gastos em até 70% da taxa de crescimento da receita primária do ´País — isto é, a arrecadação de impostos. O segundo limite se encaixa em um intervalo estipulado pela própria pasta para engordar o caixa, que ficaria sempre entre 0,6% e 2,5%, em valores reais.

Ao completar cinco anos da sua aprovação, em 2021, analistas correram para mostrar como o Produto Interno Bruto (PIB) nacional havia crescido após o teto de gastos ter entrado em vigor: em 2017, a taxa era de 1,3%; em 2018, de 1,8%; e, no ano seguinte, de 1,4%. À época, outro fiador do regime fiscal, o ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles, defendeu a medida dizendo que as despesas públicas tinham crescido demais no começo da década, cujo efeito pernicioso havia sido a queda de investimentos no Brasil pela desconfiança sobre a capacidade do governo honrar seus débitos.

Durante a pandemia de covid-19, buscava-se uma alternativa econômica que suportasse financiar os programas de socorro às famílias que não podiam se sustentar durante a quarentena sem que o teto fosse “furado”. Ao fim, o então ministro da Fazenda, Paulo Guedes, conseguiu deixar o auxílio fora do escopo regulatório, levantando novas críticas.

NOVO ARCABOUÇO COMO SOLUÇÃO

Há algumas semanas, Felipe Salto, ex-ministro da Fazenda de São Paulo e, atualmente, economista-chefe da corretora Warren Rena, publicou um estudo mostrando que, se tivesse entrado em vigor em 2011, o arcabouço fiscal proposto por Haddad teria reduzido as despesas públicas de lá para cá — e não aumentado.

Ao lado do também economista Josué Pellegrini, Salto observou que a média de crescimento do orçamento brasileiro entre 2011 e 2022 foi igual ao limite imposto pelo arcabouço em debate: 2,5%. Nesse mesmo intervalo temporal, a receita líquida do governo subiu, em média, 1,4% por ano. Assim, ambos perceberam que, se a lei estivesse vigorando, a taxa média de alta das despesas teria sido 40% menor do que foi, de fato. Dessa forma, impactaria fortemente os resultados primários que sustentam o projeto. Dessa forma, os gastos públicos sofreram uma queda de R$ 775,3 bilhões no período — média de R$ 64,6 bilhões por ano. “Para parar em pé, o arcabouço vai depender da execução e da capacidade de o governo cumprir a regra, mas foi um bom primeiro passo. Há regra consistente de despesa que, se não produz ajuste fiscal da noite para o dia, controla o crescimento do gasto”, analisa Salto.

O assessor econômico André Sacconato, da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), concorda. Segundo ele, o mercado gostou não apenas do texto em si, mas também da postura do ministro em “convencer” o governo a se preocupar mais com o controle dos custos. Mais do que isso, o economista vê com bons olhos a inclusão de alguns gastos sociais dentro do escopo da nova regra. “Pelo menos a princípio, o dinheiro usado para educação, saúde e investimentos estão incluídos nessas contas. Havia grande receio de que essas grandes despesas ficassem de fora”, explica. “Mas há uma preocupação clara em não ter aumento desordenado dos gastos em substituição ao teto”, continua.

NOVO ARCABOUÇO COMO PROBLEMA

Enquanto há um elogio comum do mercado ao esforço do governo em manter as despesas na linha, por outro lado, existe uma preocupação acerca da capacidade de implementação.

Uma das vozes mais relevantes que se colocam contra o projeto é o economista Marcos Mendes, do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), principal autor do teto de gastos aprovado em 2016. Para ele, o texto não garante estabilidade da dívida pública e, pior do que isso, depende do aumento constante das receitas que, no limite, terão que vir de impostos. “Será preciso aumentar a receita no valor maior do que a União recebe, hoje, de imposto de renda líquido. Isso não se faz só acabando com subsídio tributário, ‘jabutis’ e lacunas da legislação fiscal. Exigirá um aumento muito forte da carga tributária, que é bastante prejudicial ao crescimento econômico”, analisou Mendes, durante audiência pública na Câmara dos Deputados há algumas semanas. Sacconato, da FecomercioSP, também aponta esse como o gargalo mais evidente da proposta: a suposição de que as receitas sempre vão crescer — nunca cair. “Parece mais uma regra de administração da abundância, que pouco diz sobre lidar com escassez. O valor real dos gastos vai subir sempre, independentemente das condições econômicas”, nota o assessor.

“Pelo menos a princípio, o dinheiro usado para educação, saúde e investimentos estão incluídos nessas contas. Havia grande receio de que essas grandes despesas ficassem de fora.” (André Sacconato , assessor econômico da FecomercioSP)

Essa é também a crítica de José Márcio Camargo, professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e economista-chefe da Genial Investimentos. Na mesma sessão organizada na Câmara, em junho, ele destacou que o arcabouço mostra um “otimismo exagerado do governo” com as receitas. Na prática, elas só podem aumentar do jeito esperado se os tributos ficarem mais pesados no bolso da população, o que vai na contramão das promessas de Lula na campanha eleitoral de 2022. “Mesmo em uma conjuntura de aumento da carga tributária suficiente para estabilizar a dívida pública brasileira, demandas políticas serão um importante fator de risco ao longo dos próximos anos. Propostas de recuperação gradual dos valores reais do salário mínimo devem impactar os gastos com encargos pessoais e previdenciários”, exemplificou o professor.

Assim, dentre tantos dilemas, ressalta-se o mais relevante: o orçamento de 2024, que deve ser enviado pelo Executivo à Câmara até o fim de agosto. Se tudo sair como planejado, será o primeiro dentro da nova legislação — e, enfim, quando o País poderá tirar as primeiras conclusões sobre o assunto.

Vinícius Mendes Débora Faria
Vinícius Mendes Débora Faria