Renda comprometida

09 de dezembro de 2024

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A vendedora Cleonice Dias organiza as contas domésticas à moda antiga: pendurando-as na porta da geladeira. Ao fim de cada mês, ela coloca os boletos em cima da mesa e, ao lado do marido, o psicólogo Márcio Reina, vai pagando cada um no mesmo movimento em que anota as despesas liquidadas. No balcão anexo à cozinha, caderninhos de anos anteriores empilham-se, formando uma espécie de arquivo contábil de uma casa onde, hoje, ambos vivem com a filha mais nova, Aracely, de 19 anos. Folheando as anotações de 2023, ainda é possível encontrar o nome do filho mais velho, Lucas, 25, que se casou em dezembro do ano passado. Foi o mesmo período em que as coisas desandaram. “A gente raspou tudo o que tinha para ajudá-lo a pagar a festa e dar um dinheirinho para ele arrumar a casa nova, e ainda tivemos que pedir um empréstimo no banco”, conta Cleonice. 

O financiamento gerou um acréscimo mensal de cerca de R$ 800 no orçamento do casal. Na hora de assinar o contrato, não parecia um valor significativo, mas agora pesa no orçamento. “Já faz dois meses que a gente não consegue pagar”, admite Cleonice. “Eu estou esperando os mutirões de renegociação de fim de ano para tentar diminuir a parcela. Só assim teremos algum fôlego”, completa Reina.

Por motivos diversos, essa é uma realidade que atravessa a vida de quase 3 em cada 10 lares nas capitais brasileiras, incluindo o Distrito Federal, de acordo com o estudo Radiografia do Endividamento, da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP). São 28,8% de famílias com contas atrasadas, uma queda de 0,8 ponto porcentual (p.p.) em relação ao ano passado, quando eram 29,6% os inadimplentes. Entre 2022 e 2024, o índice de endividamento nas capitais brasileiras — quando há dívidas, mas são pagas em dia — manteve-se inalterado, em 78%. 

No entanto, esse não é exatamente um número negativo, segundo o autor da pesquisa, o economista Fabio Pina. “Se considerarmos que quase 80% das famílias das capitais estão endividadas, a margem de inadimplência parece até natural”, opina. “Mostra que a maioria desses lares está conseguindo pagar as contas em dia, pela boa conjuntura do emprego e pela consequente elevação da renda”, acrescenta. No trimestre encerrado em setembro, o desemprego caiu para 6,4% no Brasil, uma das taxas mais baixas da série histórica, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Júlia Braga, que leciona na Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e assumiu o cargo de subsecretária do Ministério da Fazenda no início de 2024, nota que a principal modalidade de endividamento dos brasileiros — o cartão de crédito, com cerca de 85% dos casos — diz muito sobre como a conjuntura da pandemia de covid-19 permaneceu. “Naquela época, muita gente usou o cartão de crédito nas compras online. Agora, é alternativa para quem não tem outra opção. O problema é que esse crédito acaba comprimindo uma renda que poderia estar sendo utilizada para despesas mais importantes”, diz.

Além disso, dois outros fatores exercem papel relevante nesse cenário, como aponta Flávio Comim, professor na Escola de Administração da Universidade Ramon Llull, em Barcelona, e pesquisador na Universidade de Cambridge, na Inglaterra: a inflação e os juros. “As pessoas ainda estão contraindo dívidas para chegar ao fim do mês, o que fica mais complicado quando os preços sobem — ou, justamente para controlá-los, a Selic aumenta”, explica.

Capitais dissonantes

Há algo, porém, que chama mais atenção na pesquisa: a variação relevante nos dados entre as capitais. Belo Horizonte, por exemplo, é a mais inadimplente, com 54% dos lares convivendo com alguma dívida vencida. Na contramão, só 6% das famílias de João Pessoa vivem a mesma situação. Porto Alegre é a mais endividada do País, com 91% de famílias nessa situação, enquanto Belém tem a menor proporção de lares com dívidas, com 69%. Na capital gaúcha, o dado até aponta uma queda em relação aos anos anteriores — em 2023, chegou a 96% das casas. A metrópole paraense, por sua vez, viu o indicador subir 8 pontos ao longo de um ano, indicando uma alta considerável do endividamento local.

De acordo com Pina, sem deixar de considerar a informalidade — uma pesquisa da consultoria Plano CDE mostrou, por exemplo, que boa parte dos brasileiros prefere pedir dinheiro emprestado a amigos e familiares antes de recorrer aos bancos —, outros fatores têm papel preponderante nessa conjuntura, por exemplo, o modelo de trabalho nas cidades. Ele explica que em algumas regiões há mais funcionários públicos, como é o caso de Florianópolis. “A consequência é uma oferta de crédito mais abundante, o que leva a um endividamento local maior, mas sem que isso necessariamente se transforme em inadimplência”, detalha o economista. De fato, na capital catarinense, 22% das famílias têm contas atrasadas em um universo de 72% de lares endividados.

Outro fator é a renda, que também varia substancialmente entre as capitais. Nesse tópico, a análise é mais óbvia. Onde os rendimentos são maiores, há menos chances de inadimplência, embora exista um número maior de endividamento. Outro relatório da FecomercioSP mostra que, neste ano, Goiânia foi a capital que registrou a maior renda familiar média do Brasil — cerca de R$ 14,6 mil mensais —, com endividamento local de 68% das famílias, das quais 34% estão inadimplentes. Do outro lado dessa lógica, Porto Alegre aponta o rendimento mais baixo do País (de R$ 5,5 mil), com uma inadimplência de 38%. “Os bancos amparam-se nesse tipo de cálculo para decidir onde vão atuar e quais são as margens de segurança. A tendência é que, quanto mais renda, mais dinheiro disponível no sistema financeiro, mas não é o único fator”, enfatiza Pina.

Apesar das variações, Julia, do Ministério da Fazenda, observa outro número da pesquisa que gera preocupação: o comprometimento da renda para pagar dívidas. Hoje, praticamente um terço (29,6%) de tudo o que entra nas casas dos brasileiros residentes nas capitais é destinado para esse fim. “As pessoas estão usando mais dinheiro para pagar juros — seja no cartão de crédito, seja no sistema rotativo, seja no parcelamento da fatura —, ou mesmo na hora de financiar ou renegociar um empréstimo. Isso não é nada bom”, ressalta. Da mesma forma que acontece com endividamento e inadimplência, o comprometimento dos ganhos para pagar dívidas é desigual entre as capitais. Em Teresina, por exemplo, quase metade (43%) da renda doméstica vai para pagar essas contas, a maior taxa entre todas as capitais do País, enquanto em João Pessoa essa proporção é de apenas 12%. A diferença é de 31 pontos.

No entanto, Pina avalia que ter 30% do orçamento destinado a esses débitos não é um grande risco. “O problema é quem está acima dessa margem”, esclarece. A pesquisa não aponta as bordas da média, mas os dados de São Paulo podem oferecer algumas pistas. Na capital paulista, segundo outro relatório da FecomercioSP, 26% das famílias gastam mais da metade do que ganham para pagar dívidas. “Isso deve se repetir em muitas outras capitais, principalmente naquelas com maior inadimplência”, analisa. Nesse caso, são pessoas que estão tomando dinheiro no mercado de crédito para arcar com dívidas antigas. É uma bola de neve perigosa”, finaliza o economista.

Vinícius Mendes Débora Faria
Vinícius Mendes Débora Faria