A expressão soft power foi cunhada por Joseph Nye, cientista político e professor em Harvard no fim dos anos 1980. Foi uma forma de descrever a habilidade de certos países de atrair e persuadir os demais sem o apelo de armas ou pressão econômica. Desde então, o termo passou a ser frequente nas Relações Internacionais. Segundo Nye, o conceito de poder é a capacidade de influenciar os outros. Há três formas de chegar lá: ameaçá-los com porretes (via militar); recompensá-los com cenouras (via econômica); ou cooptá-los para que queiram o mesmo que você. Quem conseguir pela terceira via — o tal soft power —, gastará menos com cenouras e porretes.
Um tabuleiro de xadrez é metáfora frequente para ilustrar disputas de força entre duas potências. Num mundo de relações multilaterais, a referência se torna limitada, já que esse jogo não contém apenas um oponente. Mais que isso: os poderes bélico e econômico seguem como principais ativos de força no tabuleiro global — no entanto, um terceiro, mais leve (por assim dizer), tem reequilibrado forças e posto em evidência nações que não necessariamente sejam campeãs em influências econômica e militar. É aí que entra em cena o soft power, um tipo de influência intangível, mas já medida por consultorias e organismos internacionais. Lazer, cultura, esporte e até produtos do entretenimento entram na conta do que faz um país influenciar as preferências e os comportamentos de vários atores na arena internacional — sejam Estados, sejam corporações, sejam comunidades —, sempre por meio da atração e da persuasão, e não da coerção.
Futebol, praias, festas e a cordialidade do povo colocam o Brasil em lugar relevante no mundo quando o assunto é soft power, mas ainda aquém das reais potencialidades de um país com tamanha dimensão territorial, diversidade, cultura e influência regional. O que os números mostram é que os esforços do Brasil para se tornar uma liderança global pacífica se mostram pouco frutíferos até o momento. O País ficou em 31º lugar no Soft Power Index 2024, estudo da Global Finance que classifica as nações pela influência, mantendo a posição do ano anterior e fora do topo das 30 nações mais dominantes do mundo. Dentre os líderes do soft power, destacam-se as potências do bom e velho hard power, como Estados Unidos, Reino Unido e China — em primeiro, segundo e terceiro lugares, respectivamente. A lista traz também países que despontam nas primeiras posições ou tiveram fortes altas graças ao sucesso de sua cultura pop, literatura, gastronomia e esportes, como os casos de Suíça (8º lugar), Coreia do Sul (15º) e Catar (21º).
Desde que entrou no estudo, há cinco anos, o Brasil ganhou apenas dez pontos no índice. O País se sai bem em atributos como “diversão” e “liderança em esportes”, mas será difícil aumentar a sua influência se não trabalhar para melhorar a percepção nas métricas que mais pontuam no ranking da Brand Finance, como Educação e Ciência (58º lugar), Relações Internacionais (38º lugar) ou Negócios e Comércio (41º lugar).
Calculando o incalculável
O índice da Brand Finance é medido com base em uma pesquisa de opinião realizada com 170 mil líderes políticos e empresariais de mais de cem países, que contam as próprias percepções sobre os 193 membros da Organização das Nações Unidas (ONU). Na sequência da China, Japão e Alemanha completam o “top 5”. Entretanto, esse conceito parece seguir na contramão dos conflitos armados: nos últimos anos, Rússia, Ucrânia e Israel vêm perdendo pontos e posições no ranking. O Global Soft Power Index leva em conta 55 métricas e avalia sete dimensões: Negócios, Governança, Relações Internacionais, Cultura e Tradição, Mídia e Comunicação, Educação e Ciência, Pessoas e Valores. Há subdivisões dentro dos itens. “Belezas naturais” e “comida” estão sob o guarda-chuva “cultura e tradição”, por exemplo. E cada uma dessas dimensões tem variáveis de familiaridade, reputação e influência, porque conhecer é diferente de admirar — e ainda mais difícil é despontar como liderança em uma dessas áreas.
“O primeiro drive é a familiaridade, porque eu não consigo associar valores a algo que desconheço. Já a reputação é um índice de favorabilidade, pois detecta se tenho tendências ou atitudes positivas em relação a alguma coisa. O Brasil é bem conhecido, mas a taxa de reputação não acompanha esse conhecimento. Por fim, temos a influência, que é como um país impacta os outros”, explica Eduardo Chaves, diretor-geral da Brand Finance no Brasil, sobre como é montada a avaliação. Um dos problemas do Brasil, segundo Chaves, é que mesmo em aspectos em que o País é bem conhecido e goza de boa reputação, a influência tende a ser baixa. Somos reconhecidos pelas belezas naturais, mas isso não se traduz na atração de grandes volumes de turistas. Em 2023, 7,4 milhões de estrangeiros visitaram o Brasil, um recorde nacional, mas bem abaixo dos 38 milhões que visitam, anualmente, o México, que compartilha características positivas e negativas com o nosso país, como belezas naturais, fatores econômicos e violência. Além da segurança pública, pesam na decisão do turista internacional percepções sobre a falta de infraestrutura e corrupção, assim como a educação deficiente, que reduz drasticamente o número de pessoas que falam inglês por aqui.
Os melhores indicadores são os que apontam que somos uma população “amigável”, com 7,3 pontos de 10, e “divertida”, com 7,1. No entanto, no bloco “governança”, a situação não é nada interessante: a média ficou em 2,9. As notas mais baixas do Brasil foram em “exploração espacial” (1,4) e “liderança em ciência”, com apenas 1,7 ponto. “Até temos pólos importantes de ciência, mas a baixa qualidade geral da educação faz com que eles passem despercebidos”, afirma o diretor da Brand Finance.
O índice não é (nem pretende ser) um retrato da situação real dos países. Trata-se, na verdade, de um reflexo da imagem projetada por cada nação ao restante do mundo. “Não são indicadores diretos, mas um somatório das percepções. Por mais que o Brasil tenha mídias livres, há dois anos, por matérias que foram veiculadas em meios globais, nossa nota baixou no quesito ‘mídia confiável’ e estamos, hoje, só com 3,6 pontos. É uma variável diferente de avaliar a liberdade de imprensa de fato”, explica Chaves.
Portanto, um trabalho de relações públicas e marketing pode ter bons resultados para aumentar o soft power de um país. Contudo, o trabalho com a imagem só vai até certo ponto, alerta o diretor da Brand Finance. “Cada público dá mais importância para pontos específicos. O investidor quer uma economia estável e baixa corrupção. Um importador quer confiança e sustentabilidade”, detalhe Chaves. E é fundamental que a percepção acompanhe a realidade. “Se a mensagem for de que somos um país de baixa burocracia, na primeira vez que a empresa passar por um desembaraço aduaneiro complexo, perderá a confiança e vai fugir”, diz. Portanto, a mensagem enviada deve ser compatível com os fatos.
De onde vem o ‘poder suave’
Alexandre Uehara, coordenador do curso de Relações Internacionais na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), explica que foi a crescente influência global de um Japão desmilitarizado que levou os analistas a prestar atenção a novos aspectos do que torna uma nação influente além do número de ogivas nucleares e do Produto Interno Bruto (PIB). “Depois da Segunda Guerra Mundial, o Japão foi recuperando as relações com os vizinhos e conseguiu amenizar as tensões. Esse poder não vinha das armas, mas por meio das empresas de desenhos animados e pelas novelas”, cita o professor. Ele reconhece, ainda, que o crescimento econômico via educação e investimento em tecnologia também tiveram um peso importante para melhorar a influência do país. “O soft power é uma nova maneira de pensar as relações internacionais — para além do poder militar e da competição entre Estados Unidos e ex-União Soviética, de quem tinha mais armas nucleares”, explica Uehara. Mas um dos problemas do conceito do soft power é a dificuldade de mensurá-lo. Critérios para definir e avaliar uma ação tão abstrata como “influência” são menos objetivos do que a quantidade de armamento militar ou dólares do PIB.
Ainda que sem uma metodologia única bem estabelecida, parece haver certo consenso a respeito da posição que o Brasil ocupa na capacidade de exercer esse poder “suave”. Outro ranking global, o Nation Brands Index, coloca o País como a 27ª nação mais admirada do mundo, entre 60 países pesquisados. A responsabilidade por estarmos nesse patamar (e por sair dessa situação) é coletiva, defende o professor na ESPM. De um lado, o governo, em todas as suas instâncias, historicamente vende para o exterior uma fórmula já velha de carnaval/samba/futebol. “Isso não serve para projetar uma imagem de que seja seguro investir aqui e que possa, por exemplo, ajudar a trazer uma fábrica para o Brasil ou que tenha em vista o longo prazo”, critica. Sem apontar nomes, mas em referência ao ex-presidente Jair Bolsonaro, Uechara lembrou que houve um líder brasileiro que ficava isolado em eventos internacionais em vez de buscar interlocução. A responsabilidade de elevar a influência nacional no mundo, no entanto, não cabe só a governos, mas a toda a sociedade, ao demonstrar orgulho do potencial do País sempre que houver oportunidade. Um exemplo de Uehara: pessoas de todo o mundo viajam em aviões da Embraer sem jamais se darem conta de que que é um produto de alta tecnologia made in Brazil. O especialista ressalta, ainda, que a bossa nova é um verdadeiro ativo no exterior, muito admirada, mas pouco explorada do ponto de vista econômico ou cultural.
‘Hard Brazil’
Em um ponto, no entanto, o País está à frente de países como Canadá, Rússia, Coreia do Sul e Austrália. Embora todos estejam mais bem posicionados em soft power, somos mais fortes numa vertente do hard power — a econômica. Neste ano, o Brasil voltou para a lista das dez maiores economias do mundo, após ter deixado o grupo em 2020, quando caiu para a 12ª posição. Diante de um PIB de US$ 2,17 trilhões (2023), é o nono país mais rico do mundo — e as projeções para 2024 já nos levam à oitava posição, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI). “O Brasil gosta de se imaginar como uma grande potência de soft power, mas, frente a esses índices, percebemos que não é bem assim. Estamos melhor em rankings de poder bruto. Não temos bomba atômica, mas somos um país mais importante militar e economicamente do que de outra forma”, afirma Daniel Buarque, pesquisador no Instituto de Relações Internacional da Universidade de São Paulo (USP).
De acordo com um balanço feito com dados do International Institute for Strategic Studies (IISS), responsável por um anuário sobre o estado das Forças Armadas globais, o Brasil subiu de 15º para 14º no ranking de países com maior gasto. Na lista da Global Fire Power, que contabiliza a frota de aeronaves militares, o Brasil aparece na 17ª colocação. De novo, sempre melhor que nas listas de soft power. Para Buarque, talvez seja a hora de nos concentrarmos mais em nos fortalecermos no poder tradicional. “Questiona-se muito na academia qual é o benefício real. Não faz sentido a ideia de que um país possa virar uma potência só com soft power. Uma potência global é um país importante militar e economicamente. O soft é só a cereja do bolo”, defende o pesquisador.
Kimchi, dorama e pad thai
Obter vantagens práticas com o soft power, na verdade, depende muito dos objetivos estratégicos de cada país. O exemplo da Coreia do Sul ilustra bem isso. “Eles têm uma indústria importante ligada ao k-pop [música pop coreana] e conseguiram quebrar a barreira da língua e ganhar um Oscar. Claro que isso traz vantagens, como crescimento econômico, mas não estão querendo disputar com a China o papel de liderança asiática, nem pedem uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU”, afirma Buarque, que cita ainda que o governo da Tailândia chegou a bancar a abertura de restaurantes de comida típica do país ao redor do mundo como forma de valorizar a gastronomia local. “O Brasil tem uma boa imagem e é muito reconhecido. Mas ter Pelé e Ronaldo não vai ajudar a negociar a paz na Ucrânia. Talvez fosse bom para ajudar a vender bolas de futebol, ou exportar mais jogadores”, afirma Buarque.
Além de adaptar as expectativas a respeito do que a influência “amena” pode trazer de benefícios palpáveis, a sociedade brasileira precisa resolver algumas questões internas e estruturais antes de seguir o modelo coreano de exportar cultura. “A polarização interna atrapalha muito. No Brasil, a direita critica a Lei Rouanet, chama artista de vagabundo”, critica o pesquisador. O Brasil deve, sim, se esforçar para ganhar mais reconhecimento internacional pelo que faz de melhor, mas também precisa saber traduzir isso em vantagem econômica de fato. O caminho é longo e difícil, mas vale a pena. No fim das contas, os diferentes tipos de poderes se retroalimentam — e uma economia mais forte se traduz, inequivocamente, em mais poder.