Diante da aprovação de um marco regulatório e da chegada de investidores, cresce o número de iniciativas de inovação no setor público. Mas se na esfera federal somos referência, nas cidades, a realidade ainda é analógica. O desafio para desenvolver um ecossistema govtech no Brasil é cultural e adaptativo, o que inclui a capacitação dos gestores públicos e o estímulo à cultura de inovação. A principal barreira está nos diferentes níveis de maturidade institucional.
O brasileiro é conhecido por aceitar bem o uso das plataformas digitais. Basta ver como Airbnb, iFood, Spotify e Uber caíram no gosto popular, tornando o consumidor acostumado à praticidade sem limite de horário, tudo na palma da mão. Com os serviços públicos, muitas vezes associados à burocracia, a aceitação levou mais tempo, mas já pode ser notada. O ambiente de tecnologia pública no País conta com exemplos de inovação bem-sucedidos, como o Imposto de Renda e o PIX. A plataforma digital do governo federal (Gov.br) já tem mais de 150 milhões de usuários, com documentos como identidade, carteira de trabalho, habilitação e comprovantes de vacina em versões digitais, disponíveis no celular.
Além do que o setor público faz para se digitalizar, surgiram as govtechs, empresas de tecnologia com o propósito de gerar inovação e economia de recursos. O Brasil tem, atualmente, 475 startups e Pequenas e Médias Empresas (PMEs) nesse segmento, número quase seis vezes maior do que em 2020, segundo o Mapa Govtech Brasil 2024, estudo do BrazilLAB — hub de inovação que conecta empreendedores com o Poder Público —, que conta com o apoio da Oracle. A maioria dessas empresas oferece soluções voltadas a gestão pública (160 startups), educação (80) e saúde (74), além de iniciativas nas áreas de Segurança, Habitação, Urbanismo e Mobilidade. Do total, 51,79% estão no eixo Sul-Sudeste (33,48% só em São Paulo). Depois, vêm as regiões Sul (21,47%) e Nordeste (14,32%). Apenas 2,5% estão na Região Norte.
Além do crescimento do número de govtechs, cresceu o volume de iniciativas públicas de inovação em todos os poderes e níveis governamentais. O estudo identificou 338 programas de inovação do Poder Público — em 2019, esse número não passava de 20 —, com a maior parte vinculada ao Poder Executivo e à União. Se, na esfera federal, o Brasil já é apontado como referência mundial, no âmbito municipal, muitos atendimentos ainda são presenciais, o que indica o potencial de crescimento desse mercado.
A transformação digital dos serviços públicos foi puxada por mudanças na legislação. Recentemente, foram aprovados três instrumentos jurídicos que facilitam os negócios entre startups e governos, incentivados pela tendência de investimentos em modelos orientados ao Business to Government (B2G), ou seja, que têm como cliente final algum contratante ou beneficiário ligado ao Poder Público. A pandemia de covid-19 também acelerou essa digitalização.
Até 2020, a legislação brasileira de compras públicas era o principal entrave ao desenvolvimento do ecossistema govtech no Brasil, com barreiras para o fechamento de contratos entre startups e órgãos estatais. A adoção do tripé regulatório govtech — composto pela Nova Lei de Licitações, pela Lei do Governo Digital e pelo Marco Legal de Startups e do Empreendedorismo Inovador — gerou oportunidades para novos negócios. Segundo Vera Monteiro, professora de Direito Administrativo na Fundação Getulio Vargas (FGV), os avanços na legislação são importantes para facilitar as contratações, além de ajudar os entes públicos a entender a magnitude das próprias necessidades antes da contratação dos serviços, com a autorização para realizar testes na busca pelas melhores soluções. “Temos uma legislação que ampara melhor a tomada de decisão. E uma parcela do Poder Público se capacitou e desenvolveu boas práticas de governo digital, com política de dados e informações abertas. Sem falar nos laboratórios de inovação, cuja atuação tem sido importante para a consolidação do ecossistema”, avalia a especialista na área de Contratações Públicas.
O avanço da regulação criou bases mais sólidas também para que as startups que oferecem esses serviços pudessem receber investimentos. Houve um substancial aumento do fluxo de capital no mercado B2G, mediante a criação dos primeiros fundos dedicados ao negócio, com importantes rodadas de captação. A Astella, gestora de venture capital que investe em startups em estágio inicial, liderou investimentos na Gove, que facilita a arrecadação de tributos, e na Aprova, de digitalização de processos públicos. “As govtechs são uma oportunidade única em um mercado em transformação e ainda pouco explorado, que pode trazer, ao mesmo tempo, bons retornos para os investidores e transformar o País”, destaca Marcelo Sato, general partner da Astella.
A Gove recebeu investimento de R$ 8 milhões. “O capital possibilitou melhorar nosso produto e aumentar o time de relacionamento com os municípios”, conta Rodolfo Fiori, CEO e fundador da startup, criada em 2016. Com 35 colaboradores, a empresa atende a cerca de 400 municípios, em um universo de 6 milhões de pessoas. Os maiores clientes são as prefeituras de Salvador (BA) e Manaus (AM). Já a Aprova recebeu dois aportes: o primeiro de R$ 4 milhões, e o segundo de R$ 22,5 milhões. O investimento possibilitou o desenvolvimento de produtos como a solução de meio de pagamentos com parcelamento de tributos no cartão de crédito. Os recursos também deram ganho de escala na implementação de projetos. “Dobramos o número de cidades e chegamos mais longe, operando em Estados onde ainda não tínhamos atuação”, conta o fundador e CEO da Aprova, Marco Antonio Zanatta, arquiteto que fundou, em 2017, a empresa que, hoje, conta com 90 colaboradores e um portfólio formado por 140 prefeituras, incluindo Florianópolis (SC), São Paulo (SP) e João Pessoa (PB). Na plataforma, todas as concessões de licenças ambientais para comércios, serviços, obras e atividades econômicas são realizadas de forma 100% digital. “Os cidadãos chegavam a esperar um ano para ter uma licença para construção. Hoje, os processos digitais reduzem essa espera em até 80%”, conta Zanatta.
A Astella segue de olho no mercado. “Continuamos acreditando no setor e nas inúmeras oportunidades que o Brasil tem de aprimorar processos de gestão pública. Estamos abertos a conhecer soluções que busquem saídas para esses desafios”, diz Sato. Segundo o investidor, a principal tendência do mercado govtech é a migração de todos os processos físicos de órgãos públicos para o ambiente digital. “Na esfera federal, o Brasil já é referência, mas não temos a mesma amplitude na municipal, que é a porta da relação com o cidadão”, ressalta o sócio da Astella.
O Fundo GovTech, das gestoras de venture capital KPTL e Cedro Capital, nasceu em dezembro de 2022. Ao longo do ano passado, investiu em três startups: R$ 4 milhões na Augen Engenhari, que desenvolve tecnologia para digitalizar processos de tratamento da água; R$ 4 milhões na Prosas, especializada em seleção e monitoramento de projetos sociais e culturais; e um montante não revelado no Colab, atuante no desenvolvimento de recursos para dinamizar as relações entre cidadãos e serviços públicos. De acordo com Adriano Pitoli, head do fundo, no Brasil, há muitas oportunidades para a inovação. “Tivemos algumas boas experiências investindo em govtechs. Há muitas lacunas nas esferas municipal, estadual e federal para adoção de tecnologias e inovação”, afirma.
Em setembro de 2023, a KPTL foi selecionada para receber uma injeção de capital estimada em R$ 50 milhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) ao fundo, voltado a investimento em govtechs. Com o aporte, a gestora ganha fôlego para ampliar o portfólio. Pitoli afirma que o Fundo GovTech vislumbra muitas iniciativas governamentais na contratação de soluções inovadoras, como o Marco Legal de Startups e a nova Lei de Licitações. “Testemunharemos, nos próximos anos, uma onda de transformação digital nos serviços públicos. O tema govtech estará cada vez mais em evidência”, destaca. O fundo pretende captar mais R$ 200 milhões para investir em até 30 govtechs nos próximos quatro anos. A busca é por startups com produto já validado, clientes em fase de crescimento e faturamento anual entre R$ 1 milhão e R$ 16 milhões por ano.
Ao dispor de uma legislação de compras públicas entre as mais modernas do mundo, o principal desafio apontado pelo BrazilLab para o desenvolvimento do ecossistema govtech no País é cultural e adaptativo, o que inclui a necessidade de qualificação dos gestores públicos e o estímulo à cultura de inovação na administração pública. Na avaliação de Vera, da FGV Direito, a principal barreira está nos distintos níveis de maturidade institucional nos municípios e Estados nacionais. “Ter estrutura de governança de dados, agenda de informações abertas e estratégia de governo digital ainda não é uma realidade nacional. Além disso, vender para o setor público um produto que não está acostumado a usar é sempre um desafio”, resume a professora.
Para Fiori, da Gove, a grande tendência nesse mercado é a revolução na forma como os governos se relacionam com cidadãos e empresas. “Atualmente, é um relacionamento analógico, que passará a ser digital, com bastante uso de Inteligência Artificial (IA)”, diz. Já Zanatta, da Aprova, enxerga cada vez mais startups captando e fechando rodadas de investimento para diferentes soluções. “O governo tem uma gama muito ampla de atuação, como Saúde, Educação, Segurança, Assistência Social, Tributação e Administração”, aponta o CEO, que acredita em um movimento de grupos dos Estados Unidos que trabalham com prefeituras em outros países operando no Brasil, seja com tecnologia própria, seja com parceiros locais. “Trabalhar com o governo será tão sexy quanto é atuar, hoje, nos nichos mais populares do ecossistema, como fintechs ou IA”, prevê.
O BrazilLAB identifica a nova Estratégia Nacional de Governo Digital como fundamental para que não ocorram retrocessos no processo de transformação digital e inovação do setor público brasileiro. A proposta do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) é ampliar e simplificar o acesso de todas as pessoas aos serviços públicos, por meio da inclusão de Estados e municípios na plataforma Gov.br. O trabalho começou em agosto de 2023, por intermédio de oficinas para debater o tema com entes da federação, organizações da sociedade civil, instituições privadas e empresas públicas de tecnologia.
O MGI também realizou uma consulta pública que recebeu 406 contribuições. “Agora, estamos na fase final para o lançamento, que deve ocorrer em maio”, informa o secretário de Governo Digital do ministério, Rogério Mascarenhas. A partir da Estratégia Nacional, cada ente terá à mão um documento orientador para elaborar a própria estratégia, de acordo com o seu nível de maturidade digital. Dados do MGI revelam que apenas 44% das unidades federativas desenharam uma estratégia de governo digital própria, enquanto só 28% contam com planejamento na área. O portal Gov.br abriga 155 milhões de usuários e oferta 4,2 mil serviços digitais, como a Prova de Vida, a Assinatura Eletrônica e o Acesso Gov.br. “É a hora de usarmos essa experiência para impulsionar a transformação digital em Estados e municípios a partir da rede Gov.br”, destaca Mascarenhas.
O Conecta gov.br, programa para a troca automática e segura de informações entre os sistemas, foi responsável pela economia de R$ 2 bilhões desde o ano passado, segundo o MGI. O projeto desobriga o cidadão a apresentar informações que o governo já tenha quando for solicitar uma prestação de serviço, como a emissão de passaporte ou a inscrição no Cadastro Único. “Com essa integração, a pessoa está liberada de preencher formulários, emitir certidões, fazer uploads de documentos e peregrinar entre órgãos. Os sistemas conversam entre si e obtêm as informações de maneira automática. Já a administração deixa de conferir manualmente essas informações, o que diminui erros e fraudes. Isso é economia de dinheiro público”, ressalta o secretário.
A aceleração na transformação digital é dinheiro nos cofres públicos. Estudo realizado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em 2022, com base em dados da Prefeitura de São Paulo, indica que cada R$ 1 investido na digitalização gera uma economia anual de R$ 27. Em termos porcentuais, a pesquisa aponta que a transformação digital gera à sociedade uma redução média de 74% no custo unitário de uma solicitação de serviço público.