O húngaro Thomaz Farkas — que completaria 100 anos em 2024 — chegou ao Brasil aos cinco anos, com a familia que deixou para trás uma Europa destruída pela Primeira Guerra Mundial. O empreendimento do pai, a primeira loja Fotoptica de São Paulo, ajudou a formar aquele que se tornaria um ícone da fotografia moderna. Em mais de 34 mil imagens, suas lentes documentaram momentos históricos do Brasil do século 20, como a passagem do Zeppelin pela capital paulista, a inauguração de Brasília e a pobreza nos Anos de Chumbo.
Ao fim da Primeira Guerra Mundial, levas de imigrantes deixam uma Europa destruída em busca de novas oportunidades. Um dos destinos era o Brasil, onde o húngaro Desidério Farkas desembarcou. Apaixonado por instrumentos de precisão e artes gráficas, traz para São Paulo o modelo de negócio destinado a surfar na onda da fotografia, que se transformava em um hobby cada vez mais acessível e presente na vida das pessoas. A primeira loja da marca Fotoptica, na Rua São Bento, centro da cidade, logo se tornou ponto de encontro de fotógrafos amadores e profissionais, além de atender quem buscava aviar uma receita de óculos.
Nascido em Budapeste, em 1924, Thomas Jorge Farkas, filho de Dézso (Desidério) Farkas e Teréz (Thereza) Hatschek, chegou ao Brasil com cinco anos de idade e logo estava integrado ao negócio da família. Enquanto pai e mãe trabalhavam, dedicando-se ao balcão e ao caixa, ele vendia os primeiros álbuns de fotos e cartões postais da cidade, clicados pelo fotógrafo Theodor Preising. Aos oito anos, o pequeno ganha a primeira máquina fotográfica, iniciando uma carreira pioneira na moderna fotografia brasileira — que, por meio de novos enquadramentos e pontos de vista inusitados, buscava uma estética específica para essa linguagem artística. Em passeios de bicicleta pela cidade, com o aparelho a tiracolo, começa a documentar a metrópole em formação: em 1936, fotografa a passagem do dirigível Zeppelin e, em 1940, registra a inauguração do Estádio do Pacaembu.
“Era muito fácil fotografar São Paulo nos anos 1940. Ninguém chateava, você podia fotografar o que quisesse. Era uma delícia. Você saía com a máquina sem o risco de ela ser roubada”, recorda, nas memórias da urbe reunidas no livro Alguma coisa acontece: a cidade de São Paulo em 22 depoimentos (Editora Senac, 2005). À época, Farkas morava na região, por isso, pôde fotografar a construção do estádio praticamente do quintal de casa.
Em 1942, aos 18 anos, já era sócio do influente do Foto Cine Clube Bandeirante, o mais avançado centro de debates sobre fotografia da cidade. A principal influência no período foi o movimento norte-americano da fotografia direta, que teve, dentre os principais representantes, Paul Strand (1890–1976), Anselm Adams (1902–1984) e Edward Weston (1886–1964), de quem Farkas se tornou correspondente.
Engenheiro pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) em 1947, nunca exerceu a profissão, mas aproveitou as viagens durante o curso para retratar usinas hidrelétricas. Foi nesse período também que os interesses se ampliaram, e seu trabalho se voltou a uma visão humanista, em abordagem mais próxima do fotojornalismo e da fotografia documental. Em 1946, faz, para a Revista Rio, reportagem fotográfica que retrata a vida dos moradores de bairros populares e regiões do centro histórico da então capital federal. No mesmo ano, fotografa as coreografias do balé russo e do Ballet des Champs-Elysées, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Passa a frequentar a Sociedade Fluminense de Fotografia e faz amizade com os fotógrafos José Medeiros e José Oiticica Filho.
O ano de 1949 é marcante na vida de Farkas. Casa-se, em março, com Melanie Rechulski, com quem teria quatro filhos: Beatriz, Pedro, João e Kiko. Em maio, tem trabalhos exibidos em mostra coletiva do Museu de Arte Moderna de Nova York — e sete de suas obras passam a integrar o acervo da instituição. Em dezembro, naturaliza-se brasileiro. No fim dos anos 1950, viaja algumas vezes a Brasília para registrar as obras da nova capital brasileira. Em 1960, fotografa a inauguração da cidade, documentando imagens da festa e da aclamação popular do presidente Juscelino Kubitschek. Também nesse ano, após o falecimento do pai, assume a direção da Fotoptica, função que exerceria até 1987, quando a rede de lojas é vendida. Sob a sua direção, na década de 1970, é lançada a revista Fotoptica, com ensaios de fotógrafos brasileiros e internacionais. Também é fundada, com a parceria da arquiteta e curadora independente Rosely Nakagawa, a Galeria Fotoptica, primeira do País dedicada exclusivamente à fotografia.
A despeito da própria obra e das suas ações empresariais terem contribuído para elevar o reconhecimento social dos profissionais da fotografia no Brasil, Farkas atribuiu o mérito principal das conquistas da categoria ao fotógrafo francês aqui radicado Jean Manzon, responsável pelas grandes reportagens fotográficas das revistas Cruzeiro e Manchete. “Antes dele, o fotógrafo era um pária. Você entrava pela cozinha para fotografar qualquer evento, sabe?! O fotógrafo era malvisto e mal pago”.
Durante os Anos de Chumbo, emerge em Farkas o homem de cinema, paixão de juventude que o leva a produzir e financiar a série de documentários A condição brasileira. Equipes sob a sua coordenação viajam por todo o País para registrar facetas então pouco conhecidas da vida na periferia das grandes cidades e nos Estados do Norte e do Nordeste, um projeto conhecido como Caravana Farkas. Acusado de colaborar com a guerrilha, passa uma semana preso no Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), órgão repressivo do regime militar brasileiro.
A exposição individual Thomaz Farkas, fotógrafo, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), realizada em 1997 (a primeira desde 1949), revela, finalmente, ao grande público uma visão abrangente das muitas linhas de força da sua vasta obra fotográfica. Nesse conjunto convivem extremos, como os rigorosos e elegantes estudos de movimento e de corpos em contraluz que produziu sobre o tema do balé e a série de imagens coloridas sobre a pobreza brasileira, que realizou nos anos 1970 no Amazonas e na Bahia. Farkas morreu em 2011, aos 86 anos. O ofício da imagem, iniciado pelo avô na Hungria e trazido pelo pai, foi por ele transmitido a filhos e netos. Numa parceria feita pelo próprio Farkas, o Instituto Moreira Salles (IMS) tem a guarda e a preservação da sua obra, composta por mais de 34 mil imagens que cobrem o período entre as décadas de 1940 e 1990.
ESTA REPORTAGEM FAZ PARTE DA EDIÇÃO #482 IMPRESSA DA REVISTA PB. ACESSE A VERSÃO DIGITAL, DISPONÍVEL NA PLATAFORMA BANCAH.