“Matou-se Vargas! O presidente cumpriu a palavra: ‘Só morto sairei do Catete!’”, anunciou em manchete o jornal Última Hora. Já os diários de oposição ao presidente suicida não puderam noticiar nem celebrar. As sedes e os carros de reportagem de Tribuna da Imprensa e O Globo eram atacados por multidões exaltadas desde que o rádio começara a transmitir a carta-testamento deixada por Getúlio Vargas, um dos mais importantes personagens da história do Brasil no século 20.
Às 8h35 do dia 24 de agosto de 1954, um tiro ecoa no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, à época residência oficial e sede da Presidência da República, atualmente Museu da República. Logo, a carta-testamento deixada pelo até então presidente Getúlio Dornelles Vargas é lida no rádio:
“(…) Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto minha vida (…) Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta (…) Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História”.
Palavras essas que servem de combustível para que multidões ataquem sedes e carros de reportagem da imprensa de oposição, assim como a Embaixada dos Estados Unidos e o prédio da Standard Oil. Vazado em tom épico e contundente, o texto deixado por Vargas vira o jogo — o homem acuado na noite anterior por militares que exigiam a própria renúncia ou uma licença da qual já não voltaria ao cargo para o qual fora eleito democraticamente, consegue, com o gesto extremo, adiar por dez anos o golpe militar (só consumado em 1964).
“Em vez de significar um gesto de fraqueza e covardia, a autoimolação de Getúlio o tornava um mártir e, para o imaginário nacional, um símbolo heroico de resistência”, afirma Lira Neto, no terceiro e último volume da sua monumental biografia do ex-presidente. “As garrafas de champanhe que líderes oposicionistas tinham colocado na geladeira para festejar a queda de Getúlio não chegaram a espoucar”, acrescenta o historiador Boris Fausto. O suicídio de Vargas, que desnorteou os adversários, foi o seu derradeiro triunfo político. “Mais uma vez ele nos ganhou”, lamentou Otávio Mangabeira, um dos líderes da União Democrática Nacional (UDN), principal partido da oposição.
Dos pampas ao Catete
Nascido em São Borja, no Rio Grande do Sul, no dia 19 de abril de 1882, em uma família de estancieiros da zona rural na fronteira com a Argentina, a base da formação de Vargas foi o positivismo, doutrina política que pregava uma ditadura científica, liderada por uma elite intelectual encarregada de privilegiar a eficácia da administração. Dessa forma, ao liderar a Revolução de 1930, ele pôs essas ideias em prática para resgatar um país marcado por 60% de analfabetismo e uma expectativa de vida de apenas 36 anos — que, no ano anterior, tivera o principal produto de exportação, o café, atingido em cheio pelo crash da Bolsa de Nova York.
A Era Vargas, que se inicia com o Governo Provisório (1930–1934), é marcada pela centralização e pela estruturação do Estado nacional, com a introdução dos concursos públicos para o funcionalismo e a criação dos ministérios do Trabalho, Indústria e Comércio e da Educação e Saúde. No Governo Constitucional (1934–1937), são instituídos o voto feminino, a Justiça Eleitoral e a escola primária obrigatória. Finalmente, durante a ditadura do Estado Novo (1937–1945), são criadas a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e a Companhia Vale do Rio Doce. No mesmo período, são implantadas a Justiça do Trabalho e a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), garantindo direitos como salário mínimo, férias remuneradas, jornada diária de oito horas, descanso semanal, indenização por dispensa sem justa causa, entre outros.
Expulso do poder por uma quartelada em 1945, Vargas volta ao governo como líder de massas na eleição de 1950. Nesse meio-tempo, o Brasil restabelece a democracia com a Constituição de 1946, mas o governo do general Eurico Gaspar Dutra, subordinado aos Estados Unidos já em plena Guerra Fria, desperdiça, com a importação de produtos supérfluos — como meias de nylon e canetas esferográficas —, as divisas acumuladas durante a Segunda Guerra. O Vargas que retorna ao Palácio do Catete permanece coerente com os próprios pontos de vista, embora não seja mais o revolucionário de 1930, ou o ditador de 1937, que rasgara duas constituições. Obrigado a se mover dentro das limitações do Estado de direito, ele está disposto às últimas consequências em defesa de seu projeto nacional-desenvolvimentista, que avança com a criação da Petrobras e da Eletrobras.
Elite incomodada
Em pé de guerra com a elite conservadora, cultural e economicamente espelhada em modelos estrangeiros e abrigada sob uma herança escravocrata que se prolonga em berço esplêndido, Vargas assina a própria sentença de morte em 1º de maio de 1954. Nessa data, decreta um aumento de 100% do salário mínimo e faz discurso histórico aos “trabalhadores do Brasil”, seu bordão pessoal e intransferível. “União e organização devem ser o vosso lema. Como classe, podeis imprimir ao vosso sufrágio a força decisória do número. Constituís a maioria. Hoje, estais com o governo. Amanhã, sereis o governo.”
Com a profecia em mente, somada à comoção provocada pelos termos candentes da carta-testamento, uma multidão nunca vista (antes ou depois) no Rio de Janeiro sai às ruas para o cortejo fúnebre do corpo do estadista e líder populista até o Aeroporto Santos Dumont, de onde segue para o sepultamento na São Borja natal. Nos anos seguintes, Juscelino Kubitschek e Jango Goulart comandam o Brasil sob a influência direta do legado getulista, preservado até mesmo no governo estatizante do general Ernesto Geisel. O início do fim da Era Vargas só seria proclamado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1995, ao sancionar a lei das concessões que, segundo ele, “inaugura o momento em que o governo deixa de ser investidor para ser regulamentador e fiscalizador dos serviços”.
Hoje, quase 30 anos depois, enfim, a polarização entre Jair Bolsonaro e Luís Inácio Lula da Silva, consolida, cada vez mais, a confrontação entre dois esboços de nação: o da soberania nacional-desenvolvimentista, baseado na intervenção do Estado na economia, e o liberal privatista, que privilegia o capital financeiro e a globalização. Enquanto isso, da eternidade ecoa a voz astuta e enigmática de Getúlio Vargas, que certa vez declarou: “Gosto mais de ser interpretado do que ter de me explicar”.
ESTA REPORTAGEM FAZ PARTE DA EDIÇÃO #483 IMPRESSA DA REVISTA PB. ACESSE A VERSÃO DIGITAL, DISPONÍVEL NA PLATAFORMA BANCAH.