Com a lembrança dos Jogos Olímpicos de Paris ainda viva, vem à mente 2016, quando foi o Rio de Janeiro que recebeu o evento. Celebrado como uma das grandes vitórias do Brasil na última década, as Olimpíadas no Rio custaram alto aos cofres públicos. Segundo dados do Tribunal de Contas da União (TCU), os Jogos Olímpicos do Rio receberam R$ 21,5 bilhões: R$ 4,81 bilhões da prefeitura, enquanto os governos federal e estadual arcaram, cada um, com R$ 8,31 bilhões. Outros R$ 22,2 bilhões vieram de investimentos privados. O problema é que pouco sobrou para a população carioca.
Até meados de 2012, os moradores do Morro da Providência, na Gamboa, zona central da capital fluminense, se reuniam na Praça América Brum para jogar bola, dançar e tomar cerveja, um dos poucos espaços de lazer da comunidade. Sem qualquer consulta, a praça cedeu espaço à primeira estação do teleférico local — uma das obras mais espetacularizadas pelo então prefeito Eduardo Paes como promessas de “legado olímpico”. O teleférico, inaugurado em 2014, custou R$ 75 milhões e funcionou por apenas dois anos. E só voltaria a atender à população sete anos depois, em abril de 2024.
No Morro do Alemão, na zona norte, quase 2 mil famílias foram realocadas para as obras do teleférico local, responsabilidade do governo estadual. O meio de transporte funcionou entre 2011 e 2016, com previsão de reinauguração apenas para 2025. Até abril deste ano, os espaços da estação serviam como estacionamento e abrigo temporário a policiais, após um incêndio atingir uma base local das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), outra das promessas frustradas do governo para melhorar a segurança nas favelas. “Havia uma garantia de vida útil prevista dos cabos. Só que começaram a dar problema muito antes, porque, em geral, os teleféricos são em linha reta, e o do Alemão, em vaivém. O cabo é torcido de duas maneiras diferentes. Parou de funcionar por isso”, explica Licinio M. Rogério, diretor de Mobilidade Urbana da Federação das Associações de Moradores do Município do Rio de Janeiro (FAM Rio). “Quando para de funcionar, a população começa a depredar. O mesmo acontece com as UPPS: deram errado porque entraram só com a polícia, sem qualquer lado social. Depois de um tempo, o tráfico passou a conviver em paz com os policiais”, avalia.
‘Boom’ pré-olímpico
Em contrapartida, os indicadores econômicos, educacionais e de acesso a serviços públicos melhoraram na cidade — o problema é que foi só no período pré-olímpico. “O Rio de Janeiro vivia uma decadência. Após o anúncio dos jogos, a cidade viu mudanças sociais concretas, como melhora no acesso a saneamento, moradia, transporte”, explica Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV Social) e autor do livro Evaluating the local Impacts of The Rio Olympics (“Avaliando os impactos locais das Olimpíadas do Rio”, em tradução livre).
O Rio passou, de acordo com dados do livro, a apresentar 18 indicadores acima da média de outros municípios a partir de 2008. Antes disso, a capital fluminense se destacava em apenas sete. “Vale lembrar que o Brasil entrou em recessão entre 2015 e 2016. Talvez os efeitos das Olimpíadas tenham sido maiores na cidade justamente porque conseguiram manter as rodas da economia girando”, completa Neri. Contudo, as vantagens de sediar os jogos pararam por aí: as taxas de desemprego voltaram a subir e os índices, a piorar. “Muitos estudos socioeconômicos comprovam que esse tipo de evento beneficia, em geral, o capital transnacional. O aporte de recursos públicos atua como alavanca para a ampliação do capital privado de empresas, principalmente das internacionais, com o pretexto de deixar para cidades-sede os questionáveis legados esportivos”, contesta Humberto Kzure-Cerquera, professor de Arquitetura e Urbanismo do Instituto de Tecnologia na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). “Na geração de postos de trabalho, claramente se tratou de ocupações temporárias. O desemprego e a recessão econômica vieram na sequência, com a finalização dos megaeventos.”
Prejuízos financeiros após os jogos não são exclusividade do Rio. O economista Andrew Zimbalist, autor do livro Circus Maximus: The Economic Gamble Behind Hosting the Olympics and the World Cup (“Circus Maximus: o jogo econômico por trás do sediamento das Olimpíadas e da Copa do Mundo”, em tradução livre), analisou 19 pesquisas acadêmicas sobre o tema e concluiu que não vale a pena sediar megaeventos. Segundo Zimbalist, todas as previsões de orçamentos previstos nas cidades-sede, desde os jogos de 1960, extrapolaram em 172%, em valores ajustados pela inflação. A contrapartida esperada — o dinheiro do Turismo e demais investimentos — não compensaram os gastos, de acordo com os cálculos do autor.
Da beleza e do caos
À época das Olimpíadas, o prefeito Eduardo Paes montou o programa Morar Carioca, um pacotão de R$ 8 bilhões para infraestrutura nas favelas. A ideia era melhorar o acesso aos serviços públicos e reduzir a quase zero, até 2020, a discrepância entre a vida nas comunidades e nos bairros formais. Nesse pacote, constavam o teleférico do Morro da Providência e o Porto Maravilha, que previa reformas na região central da cidade. O que de fato ocorreu: a zona portuária foi totalmente revitalizada — e gentrificada.
Fato é que as tais obras de saneamento e acesso a serviços públicos não alcançaram outras áreas da cidade com o mesmo vigor. E as UPPs, que carregavam a promessa de pacificar as favelas, fracassaram. Entre planos que ficaram no papel, moradores tiveram de sair das próprias casas para a preparação dos jogos: no total, mais de 80 mil cariocas foram removidos nos anos pré-olímpicos. O caso da Vila Autódromo é um dos mais emblemáticos. O bairro fica entre a Lagoa de Jacarepaguá, na zona oeste, e o Parque Olímpico, que recebeu as principais atrações esportivas em 2016. A alegação era de que seria necessário construir vias de acesso às arenas por dentro da favela, inaceitável para o padrão olímpico. Os moradores lutaram por anos, apresentando planos alternativos, até conseguirem uma vitória. No fim, a Vila Autódromo resistiu, ainda que em número bem menor: apenas 20 famílias permaneceram no local, enquanto outras 3 mil pessoas tiveram de abandonar os lares.
Mobilidade restrita
Na região central, dentro do projeto de revitalização, a prefeitura criou o Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), obra contemplada no pacote do Porto Maravilha. A linha passa pelo Aeroporto Santos Dumont, percorre os principais pontos do centro e chega à zona portuária. “Hoje, funciona com uma velocidade menor do que na época, não sei por qual motivo. É o ‘Veículo Lento sobre Trilhos’”, critica Rogério, da FAM Rio. “Teoricamente, é um veículo de média capacidade, confortável. É o que menos apresenta problemas, na minha opinião. Mas, no projeto todo de mobilidade, foram construídos oito quilômetros de túnel para passar automóveis. É preciso de apenas quatro quilômetros para aumentar em 40% a capacidade da linha 2 do metrô”, compara.
A principal expansão do metrô foi a conexão da zona sul com a Barra da Tijuca, na zona oeste, com a construção da Estação Jardim Oceânico. No entanto, a Estação Gávea, prevista no projeto, segue parada há nove anos por causa de investigações da Lava Jato sobre superfaturamento das obras. Para evitar desmoronamentos, os túneis de acesso e a própria estação foram inundados. A previsão é que as obras sejam retomadas ainda em 2024, e a inauguração aconteça, enfim, em 2026. Outra promessa de melhoria na mobilidade urbana para a Copa no Brasil (2014) e as Olimpíadas foi o BRT, sigla para Bus Rapid Transit, modelo que contempla a criação de faixas de rolagem exclusivas para ônibus. Até 2016, três linhas foram inauguradas: a TransOeste, TransCarioca e TransOlímpica. A última delas, a TransBrasil, teve um atraso de sete anos para ser concluída. A inauguração aconteceu apenas recentemente, no fim de abril, mais de uma década depois do previsto e com custo extra de R$ 361 milhões.
Os especialistas consultados pela Problemas Brasileiros, no entanto, concordam que ambas as modalidades não resolvem o problema da mobilidade urbana da cidade, já que a melhor medida seria investir em trilhos. “Trata-se apenas de modais complementares para o sistema de circulação de passageiros. O Rio de Janeiro investiu elevados recursos para a implantação da infraestrutura destinada à operação do BRT e do VLT, negligenciando a oportunidade de expansão das linhas do metrô e a modernização dos trens urbanos. Para atender a quais interesses?”, questiona Kzure-Cerquera, da UFFRJ. “Ademais, as obras para a implantação desses modais, principalmente o BRT, ocasionaram demolições em áreas de baixa renda, afetando, inclusive, espaços urbanos de valor cultural e ambiental”, ressalta o professor. Segundo ele, houve ainda remoções de assentamentos pauperizados, contrariando qualquer possibilidade de urbanização. “Com tantos recursos drenados há anos para essa linha do BRT, o metrô de superfície não poderia ter sido uma alternativa mais eficiente?”, completa.