O mundo está mais sufocante que o normal. Isso todo mundo sabe — ou deveria saber. Estamos chegando ao fim do ano mais quente de todos os tempos, consequência do aceleramento das mudanças climáticas, que se mostram em desastres como as enchentes que destruíram o Rio Grande do Sul, em maio, ou a seca histórica que fez os preços dos alimentos dispararem. E tudo fica mais evidente com a chegada do verão, que, segundo o cálculo de especialistas, baterá novos recordes de temperatura, com ondas de calor mais intensas e perigosas.
Apesar de o planeta como um todo estar mais quente — mais de 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais, para usar termos mais precisos —, você certamente já notou que sente mais calor em alguns lugares do que em outros. Por exemplo, imagine esses dois cenários: o centro de uma grande cidade, numa tarde seca sem nenhuma sombra à vista; e um jardim com uma fonte de água no meio. O calor será sentido em ambas as situações, mas somente em uma delas a sensação será quase insuportável — é o fenômeno conhecido como ilha de calor urbana.
Não é apenas impressão. Um estudo recente da Universidade Mackenzie mostrou, por exemplo, que moradores de Paraisópolis, a segunda maior comunidade de São Paulo, são submetidos a temperaturas até 9ºC mais altas do que os que vivem no bairro vizinho do Morumbi, uma distância de menos de dois quilômetros entre um ponto e outro.
Bairros como Tucuruvi, Mooca, Freguesia do Ó e Jabaquara, também na capital paulista, têm maior média de temperatura e menor umidade do que localidades como Capela do Socorro e Riacho Grande, próximas à zona rural. Esta é a constatação de pesquisadores da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), da Universidade de São Paulo (USP), conforme artigo publicado na Revista Brasileira de Meteorologia.
Ao identificar regiões específicas, dentro da Região Metropolitana de São Paulo, que apresentam maior intensidade de ilhas de calor, os pesquisadores observaram uma variação na temperatura média entre grupos separados que pode chegar a 4ºC. E não se trata de fenômeno recente. O artigo apresenta dados meteorológicos de janeiro de 2009 a fevereiro de 2019, obtidos por 30 estações meteorológicas do Centro de Gerenciamento de Emergências (CGE).
Por que isso acontece? Basicamente pela falta de áreas verdes. As ruas de Paraisópolis têm pouquíssimas árvores, não há parques ou corpos d’água, ao contrário das mansões do Morumbi, com seus jardins, parques, fontes e lagos. O calor concentra-se onde há muito concreto e pouco verde — onde existe vegetação, dissipa-se. Sabendo disso, é natural imaginar que este seja o caso de São Paulo, a megalópole que cresceu desordenadamente nas últimas décadas, passando por cima do pouco que sobrou de mata nativa, além de canalizar e aterrar rios. O que não se sabia até agora, porém, é que, literalmente, todas as regiões metropolitanas do Brasil tornaram-se ilhas de calor — mesmo capitais bem menores e com grau de industrialização mais baixo do que São Paulo.
O pesquisador Eduardo Gonçalves Patriota e o professor Victor Hugo Coelho, ambos vinculados à Universidade Federal da Paraíba (UFPB), analisaram imagens de satélite e dados extraídos da Nasa, de 21 regiões metropolitanas do Brasil com mais de 1 milhão de habitantes, entre 2003 e 2022. O resultado, publicado no periódico Sustainable Cities and Society, impressiona: em 20 anos, todos os locais tornaram-se mais quentes. “Não houve qualquer diminuição. Todas as regiões pesquisadas esquentaram, seja de forma mais leve, seja de forma mais acentuada”, afirma Patriota. Em algumas dessas localidades, os termômetros oscilaram até 6ºC para cima na comparação com suas imediações. E isso não ocorreu apenas durante o dia — como seria o esperado, já que a radiação solar faz aumentar o calor —, mas também no período noturno.
A principal causa do agravamento das ilhas de calor, de acordo com os pesquisadores, foi a redução da evapotranspiração, o processo que faz a água passar para o ambiente por meio da transpiração de plantas e evaporação do solo. Isto é, quando há menos plantas, também há menos umidade. E quando há menos umidade, o calor permanece no solo.
As maiores variações ocorreram justamente em Manaus (6,10ºC) e Belém (4,34ºC), capitais na região amazônica e locais que vêm paulatinamente suprimindo floresta nativa para alargar as zonas urbanas. “Com a perda de vegetação ao longo do tempo, o solo fica mais quente e vai concentrando o calor cada vez mais”, explica Coelho.
Já em cidades com urbanização consolidada, como São Paulo e Rio de Janeiro, o aumento do calor é justificado pela maior densidade populacional das áreas urbanas. Isso acontece quando há uma concentração maior da chamada infraestrutura cinza — prédios, rodovias e outras estruturas da construção civil construídas sem preocupação com a preservação das funções do ecossistema. “Essas estruturas têm uma capacidade de armazenamento de calor muito grande”, destaca Patriota. Desse modo, em comparação com a área rural ao redor de capitais, São Paulo é, em média, 5ºC mais quente, enquanto o Rio de Janeiro costuma marcar 4ºC a mais. Já em Porto Alegre, com bem menos densificação que as outras duas capitais, é cerca de 2ºC mais quente.
Os pesquisadores avaliam que não há como voltar atrás na tendência de urbanização, mas é possível encontrar estratégias para diminuir os efeitos das ilhas de calor. A solução é aumentar as áreas verdes, mesmo com ações relativamente pequenas, como manter um quintal arborizado nos fundos de casa, ou telhados verdes no alto de prédios.
Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa, focado em políticas públicas sobre mudanças climáticas, ressalta que lidar com os efeitos das ilhas de calor deveria ser uma prioridade do Poder Público e da sociedade civil. “As ilhas de calor urbanas são uma ampliação local da crise climática e tornam as cidades ainda mais quentes, vulneráveis e desiguais. Quem vive em bairros mais pobres, com pouco verde e infraestrutura precária, paga o preço mais alto. Esse cenário não apenas é insustentável, como também cruel”, opina. “Enfrentá-lo exige ações claras e rápidas, como remover o asfalto e o concreto do solo, plantar mais árvores para mudar o clima local, criar telhados verdes e repensar como construímos nossas cidades. Sem isso, continuaremos um ciclo que aumenta o calor, o consumo de energia e as emissões de carbono”, conclui a especialista.
Isso não só é factível como há resultados concretos em que o Brasil poderia se espelhar. Medellín, cidade colombiana com a segunda maior população do país, iniciou, em 2016, um projeto para criar corredores verdes em grandes ruas e avenidas. Quase 1 milhão de árvores foram plantadas, além do cultivo de outras espécies de menor porte que ampliam as áreas verdes. Em menos de dez anos, a temperatura da cidade caiu 2ºC, e houve uma notável melhora da qualidade do ar.
O caminho ainda é longo e, infelizmente, há mais exemplos negativos do que positivos. Um Estado da Austrália aprovou uma lei para que novas casas tivessem telhados de cores mais claras, com o objetivo de melhorar a eficiência energética, mas a política foi abandonada por pressão do mercado imobiliário. No Brasil, o tema passou longe das propostas dos candidatos das grandes cidades nas últimas eleições. O debate, entretanto, é urgente. Não se trata apenas de desconforto térmico, mas de um perigo para a saúde pública. Estima-se que o calor tenha causado a morte de quase 50 mil brasileiros entre 2000 e 2018 — número maior que o de vítimas de deslizamentos de terra.