Nas últimas semanas, ela finalmente chegou: as áreas de instabilidade foram ocupando o mapa do Brasil e, em muitas regiões, a chuva veio abundante, encharcando o solo e trazendo o verde de volta. No entanto, os danos da longa estiagem devem pesar sobre a oferta de alimentos — e oferta em baixa, já sabe, preços em alta.
Bem pouco tempo antes, a paisagem era outra. Em setembro, o dia virou noite em várias cidades, quando fuligem e cinzas de incêndios tornaram-se tão densas que ofuscaram a luz do sol. O País quebrou recordes no número de focos de incêndio e de emissões de gás carbônico — ambos atingiram os maiores índices desde que os dados começaram a ser avaliados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e pelo sistema de monitoramento de gases atmosféricos Copernicus, da União Europeia, há mais de duas décadas.
A combinação entre queimadas e estiagem prolongada vem testando a resiliência do Agronegócio brasileiro. Os impactos já começam a chegar à mesa dos brasileiros e afetar a inflação. O Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), calculado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), acelerou para 4,42% nos 12 meses encerrados em setembro, pressionado, sobretudo, pelo impacto da seca histórica sobre os custos de alimentos e energia. “O que observamos é a questão conjuntural que está afetando o mercado de carnes, por exemplo. Ao período de entressafra somou-se o clima mais seco e as consequentes queimadas, após um primeiro semestre de alto número de abates que causou queda de preços”, afirma André Almeida, gerente do Sistema Nacional de Índice de Preços ao Consumidor do IBGE.
Lucilio Alves, pesquisador responsável pelas pesquisas sobre grãos, fibras e amidos do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Universidade de São Paulo (USP), explica que não houve registros de perdas significativas em grandes lavouras por causa das queimadas. Os maiores efeitos devem ocorrer a médio e longo prazos em culturas semiperenes, como a cana-de-açúcar em São Paulo. “A cana estava em brotação para ser colhida no próximo ano, e a falta de chuvas nesse momento pode prejudicar a próxima safra”, argumenta.
Os desdobramentos mais preocupantes, segundo o pesquisador, estão na deterioração da qualidade dos solos e na produtividade futura, em um cenário de mudanças climáticas que parecem cada vez mais persistentes. Esse é um problema principalmente para culturas temporárias, como soja, milho e algodão. “Vai exigir tratos intensos do solo ao longo do tempo para manter a fertilidade”, observa. Ainda assim, Alves avalia que a consequência foi limitada. “A possibilidade de escassez de produtos está descartada, mas o setor agrícola precisará de um manejo cuidadoso para recuperar e manter a qualidade dos solos e evitar prejuízos a longo prazo”, aponta.
Se as queimadas têm repercussão localizada, o efeito da seca prolongada é mais abrangente. O economista André Braz, coordenador dos Índices de Preços do FGV Ibre, opina que o cenário de estiagem severa é fator de pressão constante sobre os preços da cesta básica. “As queimadas foram, de certo modo, isoladas, então não influenciaram na oferta de alimentos de forma gritante. Mas a seca, sim, compromete as safras, reduz a oferta de alimentos e gera problemas na geração de energia”, enfatiza.
Ele cita como exemplo a seca em áreas usadas para pasto, que tem obrigado pecuaristas a comprar rações especiais para o gado, aumentando os custos de produção, o que incide nos preços da carne e do leite, itens essenciais da cesta básica. “É um desafio que deve perdurar até o início das chuvas”, alerta Braz. Além disso, a seca também afetou a produção de algumas frutas, como o mamão, e a colheita de café, que já acumulou alta de 20% no ano. Esses produtos são mais sensíveis às variações climáticas.
O economista acredita que o aumento da inflação em razão da seca deve perdurar em outubro, mas começará a ceder a partir de novembro, quando as chuvas se tornarem mais constantes. “Os efeitos devem cessar nos próximos meses, mas essa seca foi muito rigorosa. Mesmo voltando a chover, ainda veremos alguma pressão nos preços por causa do impacto acumulado”, completa.
Desafios climático e econômico
Esse cenário foi o principal motivo para o agravamento das queimadas, também sem precedentes. O Brasil caminha para encerrar este ano com a pior estiagem de sua história, de acordo com um estudo da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Ao mesmo tempo que as chuvas rarearam, as ondas de calor também foram mais intensas do que o normal. Como resultado, até os volumosos rios da Amazônia secaram como nunca antes — e as imagens do fato correram o mundo.
Quase metade dos focos de incêndio foi registrada na Amazônia, e outros 30% no Cerrado. Mas também chamou a atenção o elevado número de queimadas próximo a áreas urbanas, em São Paulo e no Centro-Oeste, onde não são comuns. O Ibama aplicou mais de R$ 450 milhões em multas — o maior montante já cobrado pelo órgão — contra 138 donos de propriedades rurais acusados de destruir vegetação nativa com fogo de forma ilegal. Para se ter uma ideia, um dos incêndios, no Mato Grosso do Sul, demorou 110 dias para ser controlado, alcançando, nesse meio-tempo, 135 imóveis rurais.
A questão climática não se limita ao curto prazo. A expectativa inicial era de que a inflação de 2024 ficasse próxima da meta, entre 3% e 3,5%, mas os eventos extremos deste ano já levaram a projeções mais altas, com a possiblidade de chegar a 5%. “Se esses fenômenos climáticos tornarem-se mais frequentes, o controle da inflação será cada vez mais difícil”, alerta Braz. O economista afirma que o fato de a política monetária tradicional ser centrada no IPCA — que compara os preços de produtos básicos do primeiro ao último dia do mês — faz com que, diante de choques climáticos, se tenha pouca margem de manobra para controlar a inflação de outras maneiras.
Além disso, há uma preocupação crescente sobre como as mudanças climáticas afetam a matriz energética do País. A seca prolongada também prejudica a geração de energia hidroelétrica, que depende do nível dos reservatórios. “Se a produção de energia for comprometida, vai encarecer todos os outros setores da economia, aumentando ainda mais a inflação”, pondera Braz.
A Associação Brasileira de Supermercados (Abras) projeta que a tendência de aumento de preços para compensar uma produção menor deve continuar até o fim do ano, mesmo com a possível volta das chuvas. Os principais efeitos devem ser sentidos na produção de proteínas animais e açúcar — que também é insumo para as indústrias de alimentos e bebidas, além da farmacêutica. “É importante ressaltar que se o preço da carne bovina sobe, também puxa a demanda por outras proteínas, como frango e suínos. Essa maior demanda também eleva os preços”, afirma Marcio Milan, vice-presidente da Abras. “Os mais afetados são os brasileiros das classes C e D, pois quanto menor for a renda, maior será a parte destinada à alimentação”, diz a Confederação Nacional dos Agricultores Familiares e Empreendedores Rurais (Conafer), em comunicado.
Diante desse cenário de incertezas climáticas e econômicas, o Brasil precisa repensar as estratégias de produção agrícola e de manejo ambiental. Especialistas defendem que a adaptação às mudanças climáticas deve ser prioridade para garantir resiliência e controlar os danos causados por eventos extremos. “Cuidar melhor do clima e da natureza é um passo essencial, porque as mudanças vão pressionar cada vez mais fortemente a nossa economia”, adverte Braz.
Segundo o especialista, também é fundamental a adoção de mecanismos que evitem a flutuação dos índices que abalam o orçamento de famílias vulneráveis. O retorno das chuvas promete um alívio momentâneo, mas por quanto tempo? Com eventos cada vez mais extremos e imprevisíveis, os desafios para garantir a estabilidade dos preços e a segurança alimentar nacional estão longe de acabar.