Personagem de destaque na história do Brasil, José Bonifácio de Andrada, o patrono da Independência, também carrega passagens pouco abonadoras na biografia. Dentre elas, o hábito de publicar notícias falsas em jornais da época com o objetivo de confundir a população e tumultuar o cenário político. “Podemos dizer que José Bonifácio é o fundador das fake news no Brasil”, explica a escritora e historiadora Mary Del Priore, autora do livro As vidas de José Bonifácio (Estação Brasil, 328 páginas).
Em 1823, um ano após o imperador D. Pedro I declarar a Independência, Bonifácio fundou, no Rio de Janeiro, um jornal chamado O Tamoyo. Dentre outras inverdades e fofocas políticas, as páginas do periódico serviam para autopromoção e colocavam o patrono da Independência — que entraria em rota de colisão com o jovem imperador — como o único herói e responsável pela libertação do País de Portugal. A invenção acabou convencendo muita gente e virou quase fato consumado até os dias de hoje. “Bonifácio se colocava como a pessoa que fez a Independência do Brasil. Mas nós sabemos que, em política, nada é feito por uma pessoa só, e, certamente, ele não estava sozinho”, explica Mary, lembrando que o pós-Independência foi um período de ebulição política, circulação de boatos e disseminação de todo o tipo de informação falsa, em especial por meio de pequenos jornais.
Dois séculos depois, os métodos de desinformação se sofisticaram, mas a essência continua a mesma: pessoas e grupos políticos lançam mão de informações falsas, ou meias-verdades, para tentar vencer e, de preferência, aniquilar o adversário político. Se, na época do patrono, o papel impresso era o principal meio de disseminação de fake news, nas eleições deste ano — em que serão escolhidos novos prefeitos e vereadores de 5,57 mil municípios brasileiros —, os métodos de criação de conteúdo falso ganham um sofisticado componente: a Inteligência Artificial, ou AI.
A principal preocupação de autoridades e especialistas em comunicação política é com o deepfake, tecnologia em que a voz, o timbre e as imagens das pessoas são recriadas com notável perfeição, mas para a produção de conteúdo falso. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) investiga denúncias de uso indevido da IA na adulteração de falas e diálogos de prefeitos que devem tentar a reeleição em outubro com o objetivo de prejudicá-los. Na prática, o eleitor recebe por canais de comunicação, como o WhatsApp, um áudio ou vídeo do candidato em que ele afirma algo que, na verdade, não disse.
O perigo representado pelos deepfakes levou o TSE e o Congresso Nacional a estudar medidas eficazes para evitar uso indevido da tecnologia. No dia 27 de fevereiro, a instância jurpidica aprovou uma resolução que proíbe esses vídeos no processo eleitoral e determina que a IA só poderá ser usadas mediante aviso explícito de que a peça ou o conteúdo foi elaborado a partir de uma ferramenta do tipo. O objetivo é disciplinar o uso da tecnologia e evitar a disseminação de desinformação e conteúdo falso durante as eleições. Pela resolução do TSE, o candidato que utilizar deepfake pode ter o registro cassado. A decisão da Justiça Eleitoral já é válida para as eleições de 2024.
“A Inteligência Artificial é um avanço tecnológico que pode ser desvirtuado pelo ser humano. Até se comprovar que aquilo que foi divulgado não é verdade, milhões de pessoas podem ter tido acesso [a vídeos ou áudios]”, explica Rony Vainzof, advogado especializado em proteção de dados e consultor de cibersegurança da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP). “Posteriormente, nem todas terão acesso ao desmentido. Mesmo entre as que tiverem, nem todas acreditarão”, completa o advogado, que também é diretor da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Por outro lado, a tecnologia pode ser uma importante aliada no processo eleitoral, desde que utilizada corretamente e de maneira legítima. “Não podemos demonizar qualquer tecnologia, mas refletir sobre as soluções em diversas frentes para mitigar o risco de manipulação da realidade e evitar que os eleitores sejam enganados”, defende Vainzof.
Especialistas em marketing político apontam as vantagens da ferramenta, como maior alcance e potencial da propaganda política. É possível, por exemplo, produzir vídeos em que o candidato apresenta, de forma personalizada e com recursos de IA generativa, as suas propostas para determinada região ou grupo de eleitores de uma forma muito mais eficiente, atraente e legítima. “Há um ganho inegável em velocidade e produtividade na produção de comunicação”, explica o marqueteiro Justino Pereira, que atua em campanhas eleitorais desde 1992 e, atualmente, integra a equipe de comunicação da pré-candidatura do deputado federal Alencar Santana (PT/SP) à prefeitura de Guarulhos, na Grande São Paulo.
Apesar de ser o segundo maior colégio eleitoral do Estado, atrás apenas da capital, a cidade com cerca de 870 mil eleitores não tem horário gratuito na televisão e recebe pouca atenção da grande mídia, inclusive para a realização de debates. Isso obriga os profissionais de marketing e candidatos guarulhenses a dedicar atenção especial às mídias alternativas, como as redes sociais, situação semelhante enfrentada em outras cidades de médio e grande portes espalhadas pelo País, principalmente no interior. “As pessoas tendem a ver um lado negativo da IA. De fato, é necessário muito cuidado. Mas também existe um lado positivo, que é a possibilidade de multiplicar o discurso dos candidatos e levar a mensagem ao leitor utilizando os bots”, diz Pereira.
Veterano em campanhas municipais em cidades de grande porte na Grande São Paulo, como Guarulhos, Cotia e Mogi das Cruzes, Pereira coordenou oito campanhas a partir dos anos 1990, das quais teve sucesso em quatro. Ele ainda afirma que, mesmo com o avanço tecnológico, o corpo a corpo com os eleitores e as mídias tradicionais — os “santinhos” com nome e número dos candidatos em papel, além de panfletos, carros de som e cartazes espalhados pelas ruas — ainda são importantes na disputa. “Grande parte dos usuários costuma entrar nas próprias redes sociais uma vez por mês ou menos do que isso. Isso exige, ainda hoje, uma campanha que combine todos os recursos on e offline”, ressalta o marqueteiro.
Outra vantagem da utilização da IA é a economia de recursos, inclusive públicos, já que as campanhas são custeadas pelo fundo eleitoral, estimado em R$ 4,9 bilhões em 2024. A tecnologia dispensa a necessidade de grandes equipes e gastos para a montagem de peças publicitárias pelos postulantes — o que contribui, inclusive, para tornar o processo mais democrático. “A eficiência da Inteligência Artificial pode ser utilizada por candidatos a prefeitos e vereadores que não tenham recursos financeiros (ou tempo de televisão) a fim de aprimorar campanhas de marketing e estratégias de engajamento, levando planos de governo aos seus eleitores”, cita Vainzof.
A cientista política Maria do Socorro Sousa Braga, doutora pela Universidade de São Paulo (USP) e professora e pesquisadora na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), tem opinião semelhante. A IA, diz, pode auxiliar no processo democrático em situações como tempo de apuração de resultados, acompanhamento das campanhas durante o processo eleitoral e aprimoramento da fiscalização das condutas de candidatos. “A tecnologia avançada, quando bem utilizada, pode ajudar muito a democracia. A questão é como compatibilizar o bom uso dela com a aplicação de um conjunto de regras e normas para coibir o uso irregular”, ressalta.
Segurança em pauta
O avanço do uso da IA não deve ser a única novidade nesta eleição. Aos assuntos que tradicionalmente são abordados por eleitores e candidatos em pleitos municipais — saúde, educação, serviços públicos e mobilidade urbana —, devem ser incorporados outros, como segurança pública, mudanças climáticas e privatizações. A polarização, que já existe na esfera nacional (lulismo versus bolsonarismo), também deve influenciar nas eleições locais, principalmente nas grandes cidades, segundo cientistas políticos.
“Estas eleições serão diferentes das outras em vários aspectos. Antes, tínhamos uma pauta muito mais voltada às questões locais, como buraco de rua e serviços municipais. Agora, deveremos ter mais temas nacionais e estaduais, como segurança”, explica a cientista política Deysi Cioccari, que acredita que essa discordância política, que se arrasta desde 2018, empobrece a discussão de temas relevantes e de interesse direto da população. “A política já é vista pelas pessoas como algo distante e muito ligada às práticas de corrupção. Quando surge essa guerra polarizada, a situação se agrava, e as pessoas acabam perdendo o interesse. Assim, assuntos que realmente importam no processo de escolha do eleitor perdem espaço”, explica a cientista.