No dia 26 de abril de 1973, às 11 horas e 45 minutos, os presidentes do Brasil, Emílio Garrastazu Médici, e do Paraguai, Alfred Stroessner, entraram, juntos, no salão nobre do Palácio do Planalto, em Brasília, para a assinatura de um acordo histórico: o Tratado de Itaipu, documento que serviu de base para a construção e a operação de uma das maiores usinas hidrelétricas do mundo: Itaipu Binacional.
Criada para aproveitar o potencial hidrelétrico da bacia do Rio Paraná, a construção da usina foi iniciada em 1974 e, dez anos depois, começou a gerar energia. Desde então, Itaipu já produziu 2,9 bilhões de megawatts-hora (MWh). Além disso, no primeiro trimestre de 2023, foi responsável por 9,5% do suprimento de eletricidade do Brasil e 90,1% do Paraguai, segundo dados oficiais. No total, são 20 unidades geradoras de energia e 14 mil megawatts (MW) de potência atual instalada.
A cerimônia que tirou Itaipu do papel foi marcada pela cordialidade entre os presidentes. Em certo momento, Médici chegou a acender o cigarro do colega paraguaio, durante a leitura do extenso documento, que conta com 25 artigos dispondo sobre as obrigações de cada parte envolvida no acordo e três anexos, com questões específicas da usina. Para garantir a validade e o início do projeto, foi necessário, na época, a aprovação dos congressos de ambos os países, tornando o Tratado de Itaipu uma espécie de “constituição” da empresa.
Em 2023, Brasil e Paraguai voltam à mesa de negociações, desta vez para rediscutir os termos acordados há 50 anos. As discussões após cinco décadas, previstas no documento assinado em 1973, estarão focadas no Anexo C, que estabelece as bases financeiras e de prestação de serviços de eletricidade da Itaipu Binacional. Pelo texto original, a produção total de energia é dividida em partes iguais entre os dois países. O excedente que não for consumido de forma interna por um país deve, obrigatoriamente, ser disponibilizado para compra ao parceiro.
Como o Paraguai, de maneira histórica, utiliza apenas uma pequena parte da energia à qual tem direito, todo o excedente deve ser vendido ao Brasil, a preço de custo. Há anos, o Paraguai pleiteia a revisão do acordo para que seja autorizado a entregar a sua cota da maneira que lhe for mais conveniente, inclusive comercializando no mercado livre de energia, o que poderia gerar mais lucros e divisas ao país vizinho.
As negociações também vão levar em consideração o fim da dívida para a construção da usina, de US$ 63,5 bilhões, totalmente quitada em fevereiro deste ano. O fim do saldo devedor provocou diminuição no preço da energia. Em abril, a direção da Itaipu Binacional anunciou uma redução de 19,5% no preço da eletricidade produzida, baixando de US$ 20,75/kW para US$ 16,71/kW.
A tarifa de Itaipu é um dos componentes levados em consideração na tarifa aplicada ao consumidor final pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). O impacto positivo ao bolso do consumidor, porém, deverá ser menor, já que Itaipu responde por menos de 10% do total da energia consumida pelos brasileiros. “Chegamos a um consenso binacional, com uma redução significativa, mantendo a capacidade de Itaipu para investimentos sociais, ambientais e em infraestrutura”, diz o diretor-geral brasileiro da Itaipu Binacional, Enio Verri, sobre a redução dos preços praticados pela estatal. Segundo ele, as negociações acerca da revisão do Anexo C devem começar em agosto, após a posse do presidente eleito do Paraguai, Santiago Peña, e devem ser conduzidas pelas chancelarias de ambas as nações.
O presidente Lula já declarou que pretende fazer uma revisão que seja benéfica aos dois países. Peña, por sua vez, afirmou que pretende ampliar a participação de Itaipu no desenvolvimento do Paraguai não apenas com a venda, mas com a utilização interna da energia para a movimentação dos meios de produção paraguaios. Segundo especialistas, apesar da boa vontade inicial anunciada pelos governantes, as negociações serão complexas e devem consumir tempo até um acordo final entre as partes envolvidas. “De fato, o Brasil compra a energia que sobra do Paraguai por um custo abaixo do mercado. Isso significa que é vantajoso para o país vizinho rever o contrato e ajustar os valores de venda”, explica Sulamita Lopes, professora no Instituto Mauá de Tecnologia (IMT). “Contudo, em contrapartida, o Brasil teve uma participação superior no pagamento da construção da usina”, pondera.
O presidente do Instituto Acende Brasil, Claudio Sales, tem opinião semelhante. Ele lembra que, para sair do papel, a construção da usina teve de ser 100% financiada e coube ao Tesouro Nacional o aval para garantir o financiamento com os bancos internacionais. Outro fator que pesa a favor do Brasil, diz Sales, foram os períodos em que o País, mesmo não precisando de estoque energético, precisou honrar o acordo estabelecido na década de 1970. “Houve momentos em que o Brasil comprou energia que não precisava e a um preço maior do que a gerada internamente no seu território”, justifica.
Essa estabilidade nas aquisições, mesmo em períodos de baixa demanda, foi benéfica aos paraguaios, acrescenta Paulo Delgado, atual copresidente do Conselho de Economia Empresarial e Política da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP). “Para quem ele [Paraguai] vai vender metade da energia de Itaipu com garantia de preço e estabilidade de contrato? O melhor dos mundos continua nas águas do Rio Paraná e o sócio gigantesco de 50 anos chamado Brasil, que sempre deu mais do que recebeu”, ressalta.
A revisão do acordo pode ser uma oportunidade benéfica aos consumidores, uma vez que a quitação da dívida da construção deve gerar um reforço extra de US$ 2 bilhões por ano no caixa da estatal. “A questão da tarifa leva a posições extremas: o Paraguai quer aumentar ao máximo, e o Brasil quer reduzir ao máximo. São interesses antagônicos, o que poderá levar muito tempo para ser definido”, afirma Antonio Lanzana, também copresidente do conselho da FecomercioSP. As diferenças estruturais entre as duas nações devem ser levadas em consideração, diz Lanzana. “Embora os direitos das partes sejam iguais, os países são desiguais, e é preciso encarar essa assimetria, lembrando que o Brasil é muito maior, mais populoso e mais industrializado que o Paraguai”, pondera.
A revisão do Tratado de Itaipu apresenta um desafio adicional aos dirigentes: preparar a hidrelétrica para as próximas décadas, em um cenário de diversificação cada vez maior das matrizes energéticas. “Embora a energia hidrelétrica seja limpa, é preciso destacar dois pontos: cresce a demanda por usos alternativos da água e o crescimento de novas fontes, como a solar e a eólica”, lembra Lanzana.
A expectativa do Ministério de Minas e Energia (MME) é que, até o fim da década, as usinas hidrelétricas respondam por 42% do total da energia elétrica gerada no País, ante os quase 60% atuais. A energia solar, por sua vez, deve saltar para quase 10%, ao passo que a eólica, para cerca de 16% da capacidade instalada no Brasil. Os números constam do Plano Decenal de Expansão de Energia, elaborado pelo MME. Ainda assim, apesar do aumento na diversidade da matriz, é consenso que as hidrelétricas devem manter a posição estratégica no futuro. “A usina binacional compensa as variações naturais das fontes renováveis intermitentes. Isto é, na ausência de vento ou de sol, é necessária uma fonte que complemente essas flutuações na geração de energia”, argumenta Verri, da Itaipu Binacional. “Além de funcionar como uma ‘bateria’ natural e renovável para o sistema elétrico, a usina contribui para o desenvolvimento de outras fontes de energias renováveis, como a biomassa”, completa o diretor-geral.
Há também a questão da infraestrutura instalada e a capilaridade da energia desde a produção até o consumidor final. A linha de transmissão exclusiva já instalada para escoar a energia comprada do Paraguai se estende por mais de 800 quilômetros, entre Foz do Iguaçu, no Paraná, e Ibiúna, no Estado de São Paulo. “Tecnicamente, o Brasil tem condições de produzir energia de outras maneiras e não depender da remanescente vendida pelo Paraguai. Mas terá de avaliar a questão do transporte”, conclui Sulamita, do IMT.