A internet é realidade para 84% da população brasileira, mas apenas 22% dos brasileiros com mais de dez anos de idade têm condições adequadas para se manterem conectados. É o que mostra o estudo Conectividade Significativa: Propostas para Medição e o Retrato da População no Brasil, lançado pelo Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), braço executivo do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). A pesquisa destrincha também como os números de acesso de qualidade variam de acordo com raça e classe social.
O estudo mediu a qualidade e a efetividade do acesso da população às tecnologias digitais, levanto em consideração variáveis como custo da conexão, uso diversificado de dispositivos, tipo e velocidade e frequência de uso da internet. O estudo revela, ainda, que entre as pessoas brancas, 32% estão na faixa mais alta de conectividade significativa, enquanto que entre os que se declaram pretos e pardos, a porcentagem cai para 18%. Além disso, o acesso é melhor entre os que ocupam o topo da pirâmide social. Na classe A, 83% estão na melhor faixa de pontuação, e só 1% na pior. Nas classes D e E, apenas 1% está na melhor faixa, e 64% na pior. As piores condições de conectividade foram observadas nas regiões Norte e Nordeste. Na primeira, apenas 11% estão na faixa entre 7 e 9 pontos, e 44% na faixa de 0 a 2 pontos. Já na segunda, os porcentuais são de 10% e 48%, respectivamente. As regiões Sul e Sudeste têm os melhores índices de usuários na faixa entre 7 e 9 pontos, com 27% e 31%, respectivamente.
Segundo Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva, a inclusão digital é um conceito que vai além da simples disponibilidade de infraestrutura tecnológica. Essa ideia se refere ao acesso igualitário às tecnologias digitais, o que inclui não só a presença de conexão de internet e dispositivos adequados, mas também a capacitação das pessoas para que possam usar essas ferramentas de forma eficaz e crítica. Isso implica, explica ele, letramento digital, que é a habilidade de entender, avaliar, utilizar e criar informações usando tecnologias digitais. E cita como exemplo duas crianças: uma que estuda em uma escola com ampla conexão à internet e outra que conta com conexão limitada, tanto na escola quanto em casa. A primeira tem mais oportunidades de aprender, explorar e interagir com o mundo digital, o que amplia as chances de sucessos acadêmico e profissional. “É importante reconhecer que a inclusão digital não é apenas uma questão de infraestrutura tecnológica, mas também de justiças social e econômica. Promovê-la efetivamente significa dar a todos os brasileiros, independentemente da condição socioeconômica, as ferramentas necessárias para prosperar na sociedade digital contemporânea. Isso é fundamental não apenas para reduzir as desigualdades, mas para garantir o desenvolvimento sustentável e inclusivo do País”, avalia.
O fato é que a desigualdade de acesso à internet no Brasil dificulta o crescimento do País de várias maneiras. “A falta de acesso igualitário limita as oportunidades de educação, impacta o mercado de trabalho e restringe o acesso a serviços públicos”, diz Marcelo Cioffi, sócio da PwC. Ele aponta que a essa desigualdade de acesso, destacada no estudo O Abismo Digital no Brasil, da consultoria, não só reflete a disparidade socioeconômica do País como também ajuda a reforçá-la. “As consequências serão vistas no futuro em mais informalidade do mercado de trabalho, redução do índice de produtividade do país (que já é considerado baixo), atraso nos desenvolvimentos humano e profissional da próxima geração e redução do acesso a serviços públicos”, considera Denise Pinheiro, também sócia da PwC.
De acordo com Daniela Machado, coordenadora do EducaMídia, programa de educação midiática do Instituto Palavra Aberta, houve avanços na questão da conectividade, mas ainda está longe do mundo ideal de garantir que todos tenham internet e dispositivos. Um ponto que ela avalia como fundamental é o uso consciente da rede. “É uma luta quase permanente. Apesar de alguns avanços, é preciso ir além. Não dá para esperar resolver uma situação, que é a de garantir internet a todos, para pensar em um uso mais consciente. Isso tem de andar paralelamente”, diz.
Especialistas destacam que a desigualdade de acesso à web no Brasil é causada por diversos motivos. Um dos principais é a infraestrutura inadequada de conexão. Muitas regiões do País, especialmente áreas rurais ou periferias urbanas, têm infraestrutura de internet limitada. Isso resulta em conexões lentas e instáveis, dificultando o acesso de qualidade. “O Brasil conta com números significativos quando o assunto é internet: 88% da população são usuários da rede, sendo que a conexão está disponível em 80% dos lares nacionais. No entanto, embora o acesso em si seja, certamente, um indicador positivo, isso está longe de significar a plena inclusão digital de brasileiros e brasileiras. Não se trata apenas do acesso à rede, mas da capacidade de utilizá-la”, comenta Denise.
Cioffi, da PwC, lembra que, quanto à educação, por exemplo, o baixo desempenho do Brasil em matemática, interpretação de texto e inglês, como atestado pelos rankings internacionais, resulta na limitação do uso dos recursos tecnológicos e da internet para aproveitar plenamente as oportunidades online para aquisição de conhecimento, o exercício da cidadania e a inserção no mercado laboral. Além disso, a falta de dispositivos de hardware apropriados também contribui para a desigualdade de acesso à rede. Muitas pessoas não possuem computadores ou outros dispositivos necessários para acessar conteúdos da internet que tragam conhecimento e vão muito além do acesso básico às redes sociais oferecido pelos smartphones, por exemplo. Isso limita a capacidade de se conectar e aproveitar os benefícios da era digital. Outro fator importante é a falta de conhecimentos para usar a internet. Além disso, muitas pessoas não têm habilidades digitais básicas, como navegação na web, uso de aplicativos e segurança online.
Apesar dos altos índices de acesso à web no Brasil, a inclusão digital plena requer medidas adicionais. É necessário garantir que todos tenham acesso não apenas à internet, mas também a dispositivos modernos e à formação necessária para navegar no ambiente digital. Isso inclui programas de educação nas escolas, ofertas de cursos de capacitação para todas as idades e políticas públicas que assegurem a acessibilidade e a apropriação tecnológica em todas as camadas sociais. Essencialmente, precisamos de uma abordagem holística que considere tanto a infraestrutura quanto o empoderamento digital dos indivíduos.
É incontestável que a falta de acesso digital pode resultar em exclusões social e econômica significativas. Em um país onde serviços essenciais, como agendamentos de consultas médicas ou cadastros em programas de assistência, são cada vez mais digitalizados, aqueles sem acesso à internet ou habilidades digitais básicas ficam em desvantagem. Isso pode levar a dificuldades nos acessos a saúde, educação e oportunidades de emprego, perpetuando ciclos de pobreza e desigualdade.
Meirelles, do Locomotiva, enfatiza ainda que a crescente necessidade de acesso à internet pressiona por uma ampliação da infraestrutura de rede em áreas antes negligenciadas. “No entanto, ainda existe um descasamento considerável entre a oferta e a demanda, especialmente em áreas rurais e periféricas, onde a infraestrutura é insuficiente ou obsoleta. Esse desequilíbrio não apenas restringe o acesso a oportunidades econômicas e sociais, mas também agrava as disparidades existentes. A resposta a esse desafio deve ser multidimensional, incluindo investimentos em infraestrutura, programas de subsídios para acessibilidade e iniciativas educacionais focadas no letramento digital”, diz. E lembra que o PIX, sistema de pagamento instantâneo do Brasil, contribuiu muito para o processo de bancarização ocorrido na pandemia. “Hoje, apenas 3% da população não têm contas bancárias, ao passo que boa parte delas não tem acesso amplo aos serviços financeiros. Ainda existem desafios, principalmente no que diz respeito ao acesso e ao uso efetivo desses serviços por todas as camadas da população.” Para melhorar a inclusão digital no Brasil, considera ele, é crucial transformar o acesso à internet de qualidade em um direito fundamental, como o direito à saúde, por exemplo. A partir daí, investir em infraestrutura de rede em áreas subatendidas, promover programas educacionais que incluam o letramento digital como componente curricular essencial e implementar políticas que assegurem a acessibilidade tecnológica a preços acessíveis.
Além disso, parcerias entre os setores público e privado e Organizações Não Governamentais (ONGs) podem ser estratégicas para alcançar esses objetivos de forma mais eficiente e abrangente. “A inclusão vai além do acesso — infraestrutura, internet, dispositivos etc. —, passando também por oportunidades de desenvolver habilidades para fazer uso mais seguro, responsável, crítico e ético. É preciso uma dimensão mais ampla. Essa ideia de inclusão digital significada começa a ser pensada pela sociedade”, finaliza Daniela, do EducaMídia.