A sociedade se transforma, as relações mudam e nem sempre as leis se modernizam na mesma velocidade. Quando se trata de novos formatos familiares e direito a heranças, a reforma do Código Civil, que tramita no Congresso Nacional, tem o objetivo de atualizar a legislação atual, incorporando questões que já acontecem na prática do Judiciário, reduzindo a burocracia. Há, porém, alguns pontos em que o novo texto caminha para mudar certos entendimentos, contemplando temas ainda sem regulação, como é o caso da herança digital.
A proposta de revisão do Código Civil pretende alterar diversos aspectos da vida conjugal no Brasil. Dentre os principais, está o reconhecimento legal do casamento homoafetivo, além da substituição do estado civil de “solteiro” por “convivente” em situações de união estável. Outro ponto é a equiparação da união estável ao casamento.
O projeto também prevê a possibilidade de divórcio unilateral, com questões como guarda dos filhos e pagamento de pensão resolvidos extrajudicialmente. Outros pontos discutidos incluem o fim da separação obrigatória de bens para maiores de 70 anos e a criação da família parental, que reconhece lares formados por parentes como irmãos ou tios e sobrinhos.
Mais controversa é a proposta de excluir o cônjuge sobrevivente da lista de herdeiros necessários, o que gera críticas por possíveis prejuízos, especialmente para mulheres em desvantagem econômica.
Confira, a seguir, o que pode mudar, na prática, quando as alterações apresentadas na reforma forem aprovadas.
O novo texto deve incluir o reconhecimento do casamento e da união estável homoafetivos, algo que efetivamente já acontece. Embora não conste da lei, a formação de um casal por pessoas do mesmo gênero é permitida graças a uma jurisprudência de 2011 do Supremo Tribunal Federal (STF). A proposição de reforma aponta para uma alteração no texto da lei, especificamente no art. 1.514 — onde atualmente consta o trecho que afirma que o casamento se realiza quando “o homem e a mulher” se manifestam pela vontade de vida conjugal, será substituído por “duas pessoas livres e desimpedidas”.
Com a promulgação do novo código, talvez apenas a redação do documento do casamento ou união estável sofra alguma pequena alteração, mas sem consequências reais na vida dos casais. “No documento do cartório, é comum citarem explicitamente a jurisprudência, como uma justificativa para aceitarem aquele ato. Quando mudar, essa citação legal será desnecessária”, explica Leonardo Abreu, advogado do escritório Moreau Advogados.
A união estável, já reconhecida como entidade familiar até pela Constituição, garante os mesmos direitos em relação aos casados — e a vida das pessoas que de boa-fé vivem dessa forma não deve se alterar. Contudo, quem for registrar em cartório a relação, passará a fazê-la em um ato declaratório específico para esse fim, o que permitirá a integração nacional entre os cartórios, em um sistema próprio.
Embora não faça diferença para a maioria, a mudança pode evitar situações irregulares. “Já tive o caso de um cliente que descobriu que a mulher, com quem vivia em união estável registrada, tinha lavrado união estável também com outro homem, em outro Estado. Isso aconteceu porque não há comunicação [entre os cartórios]”, conta Abreu. O caso foi resolvido com um acordo entre as partes para a separação do casal.
Novos arranjos familiares devem passar a ser reconhecidos pela lei. A definição de que uma família é formada por um homem, uma mulher e seus filhos biológicos é limitada em comparação com as configurações reais vistas na sociedade. Existem famílias monoparentais, assim como famílias cujos vínculos afetivos independem de relações sanguíneas. O reconhecimento desses arranjos visa facilitar o acesso a uma série de direitos.
Por exemplo, uma mulher e seu marido assumem os cuidados e a criação de um sobrinho dela. Na prática, eles já constituem uma família, mas o reconhecimento legal facilitará a inclusão no plano de saúde, assim como terá efeitos previdenciários no caso de morte.
Também implica deveres, como prover alimentos — isto é, o pagamento de pensão, no caso de separação do casal. “E quando esse senhor ficar velho, [essa mudança] também o protegerá, porque o sobrinho terá obrigações como um filho”, detalha o advogado. Atualmente, essas famílias até conseguem acessar esses direitos, mas somente com ação judicial. O reconhecimento em lei deve tornar tudo mais simples.
O divórcio unilateral realizado em cartório é outra medida que procura reduzir a burocracia e desafogar o Judiciário. Quando uma pessoa deseja a separação, mas o cônjuge ou companheiro não, o caminho atual é recorrer à Justiça. A ideia do novo Código é que as pessoas possam fazer esse processo extrajudicialmente, registrando o pedido no mesmo cartório onde foi feito o casamento ou registrada a união estável.
Esse procedimento deve facilitar a vida de muita gente. “Será um avanço, porque há muitas situações de pessoas que simplesmente fogem e somem — e o outro tem de recorrer ao Judiciário, pagar custas ou procurar a Defensoria Pública”, observa Abreu. Segundo ele, para os leigos, acessar a Justiça pode parecer um mistério, mas se dirigir ao cartório faz parte do dia a dia. Pelo texto do novo Código, o outro cônjuge ou companheiro precisa ser notificado da dissolução da união. No entanto, caso ele não seja encontrado, o cartório deverá publicar em edital a notificação e, em cinco dias, o divórcio será oficializado.
Contudo, essa facilidade vai valer apenas para divórcio ou dissolução da união estável em si. Quando houver filhos menores e pedidos de guarda e/ou pensão, ou partilha de bens, o processo judicial continuará sendo necessário.
Uma das novidades com efeitos importantes deve ser a exclusão do cônjuge da lista de herdeiros obrigatórios. A lei brasileira não permite que uma pessoa decida inteiramente quem vai herdar seu patrimônio. Até 50% podem ser deixados, em testamento, para instituições ou pessoas de preferência, parte chamada de disponível. A outra metade é sempre dividida pelos chamados herdeiros necessários. Atualmente, eles são os descendentes (filhos e netos) e o cônjuge; ou, caso não haja descendentes, os ascendentes (pais e avós) e o cônjuge.
A divisão obrigatória entre os ditos necessários costuma provocar desavenças, sobretudo em famílias recompostas. Uma história real: um homem viúvo, com dois filhos, casou-se novamente, em regime de separação total de bens. Ele deixou registrado em cartório a vontade de que seus bens fossem herdados apenas pelos filhos. No entanto, quando morreu, a viúva reivindicou a parte dela, o que acabou garantido pela Justiça. Se o novo Código for aprovado, esse tipo de situação não acontecerá mais.
Hoje, quem quer privilegiar algum herdeiro, tem de lidar com a parte livre do patrimônio. “Metade do que possui pode ser deixado para um filho só, ou para um amigo, para a igreja, para uma ONG etc. Se a mulher tem um filho e um marido, pode deixar em testamento 50% só para o filho e esse filho vai dividir com o marido da mãe os outros 50%, ficando com 75% no fim”, exemplifica o advogado. Com a mudança, a situação patrimonial do cônjuge sobrevivente vai depender mais do regime de bens estabelecido pelo casal ou da existência de um testamento.
De acordo com Abreu, porém, deixar o cônjuge de fora da herança pode levar a mais litígios na Justiça. Para evitar que o viúvo passe repentinamente a ter dificuldades de sobrevivência, a nova lei tenta protegê-lo com a “insuficiência de recursos”, instituindo o usufruto temporário de bens da herança. Entretanto, apontar a insuficiência e determinar quais bens entram no usufruto pode provocar disputas.
A herança digital, uma celeuma por falta de previsão legal, deve ser contemplada no novo Código. “As redes sociais podem ser um ativo, pela capacidade de serem monetizadas. Talvez o caso mais emblemático seja o da cantora Marília Mendonça: mesmo depois da sua morte, a família mantém em atividade os perfis da artista — que, pelo engajamento, tem retorno econômico”, cita Abreu.
A proposta, contudo, não será fácil de ser implementada. Os termos de uso das plataformas não permitem que perfis sejam configurados como herança. O que acontece na prática é que outras pessoas têm as senhas e, com isso, passam a operar as redes dos falecidos. “O Instagram, por exemplo, não permite repassar um perfil para outro titular. Mesmo com ordem judicial, com a alegação de que o perfil tem valor econômico para os herdeiros, as plataformas podem recusar a mudança”, pondera o advogado.
Embora o novo Código Civil já esteja em análise, não há data para as medidas entrarem em vigor — e ainda é possível que sofra alterações. O processo de atualização do Código Civil brasileiro começou em 2023 — sob a liderança de Luis Felipe Salomão, ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), uma comissão de juristas revisou o Código atual, de 2002.
O grupo apresentou a proposta em 2024 e, na sequência, o documento foi convertido no Projeto de Lei (PL) 4/2025, que aguarda, agora, despacho do presidente do Senado. No momento, é preciso indicar qual procedimento será seguido e se o texto precisará ser analisado por comissões específicas (e quais) antes de ir a plenário. Não há data prevista para o andamento do PL.