Aviões na esquina do futuro

25 de novembro de 2025

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Foi durante suas regatas pela bacia de La Rochelle, uma das cidades portuárias da Nova Aquitânia, a cerca de 470 quilômetros de Paris, na França, que o então velejador Arthur Léopold-Léger teve uma ideia que, de tão boa, parecia já existir — produzir aviões com os mesmos materiais usados para construir barcos.

Na época, Léopold-Léger preparava-se para cruzar o Atlântico, competindo na famosa corrida Mini Transat — que sai da costa francesa em direção ao Caribe —, com um pequeno veleiro construído por ele mesmo a partir de lâminas inteiriças de carbono. Como são mais leves e não dependem da junção de muitas peças, tornam o barco mais suscetível aos ventos, mas sem perder a segurança e a resistência. “É quase como se voasse sobre a água”, afirma o velejador.

Também engenheiro aeroespacial, Léopold-Léger contou a ideia para um colega de formação, na Kingston University, em Londres, Inglaterra, Cyril Champenois. Então, com a ajuda de outro engenheiro, Nicolas Mahuet, eles juntaram aproximadamente 50 mil euros (cerca de R$ 320 mil) e enfurnaram-se na garagem da casa de Léger para materializar o projeto. Era em meados de 2015.

Dois anos depois, o avião dos três — batizado de Elixir, com espaço para duas pessoas — voou sobre La Rochelle em um teste privado. Dali em diante, as coisas decolaram na mesma velocidade — a certificação da Agência Europeia para a Segurança da Aviação (Easa, na sigla em inglês) saiu em 2020, abrindo caminho para as primeiras encomendas, que hoje já chegam a centenas, quase todas da França, mas também da Inglaterra, de Portugal e dos Estados Unidos. A empresa, também chamada Elixir, tem uma lista de pedidos até 2029, engrossada pela recém-certificação para operar no país norte-americano, principal mercado de aviação comercial do mundo.

O segredo do carbono

O sucesso é explicado, sobretudo, pelo método de produção da fuselagem com carbono. “É intrigante ver como aviões não têm tantas inovações se comparados com outras tecnologias, como o telefone”, observa Nicolas de Lassus, head de negócios da Elixir. A reportagem da Revista Problemas Brasileiros (PB) visitou a fábrica da empresa, em La Rochelle, a convite do banco BNP Paribas, um dos financiadores do projeto — e da própria Elixir. “As aeronaves de uso comercial ainda são feitas de metal, como eram produzidas há 30 anos. Embora seja o material que pavimentou a aviação, ainda é um dilema do ponto de vista da sustentabilidade”, completa Lassus.

É insustentável, uma vez que um modelo tradicional de aeronave de dois lugares, como da marca estadunidense Cessna, por exemplo, pesa em torno de 800 quilos. É um dado definitivo, porque quanto mais pesado, mais caro é voar. Nesse caso, a média de consumo de um Cessna — ou de outros modelos semelhantes — é de 40 litros de combustível aeronáutico a cada hora, o equivalente a um gasto de US$ 170 (R$ 935) por hora de voo. Entram nessa conta fatores que vão desde a aerodinâmica até a potência das turbinas.

Como o Elixir é produzido com material mais leve que o metal, uma peça grande de carbono, Léopold-Léger e seus colegas conseguiram diminuir à metade o peso da aeronave e, assim, baratear as horas de voo — diminuindo também as emissões de Gases do Efeito Estufa (GEE) do avião em uma única tacada. A empresa diz que seus aviões consomem 12 litros de gasolina comum por hora de voo, ou US$ 60 (R$ 322) por hora. É por isso, inclusive, que a maioria dos clientes é formada por escolas de formação de pilotos. “Custo operacional e segurança são duas demandas dessas instituições, e nós conseguimos resolver ambas, de alguma forma”, ressalta Lassus.

Do ponto de vista ambiental, significa reduzir em, pelo menos, 70% o volume de emissões de dióxido de carbono (CO2) da aeronave, o maior responsável pelo aquecimento global. Um Cessna semelhante emite 88 quilos de CO2 por hora.

Foi essa possibilidade que despertou o interesse do governo francês, que, em 2021, lançou uma grande agenda voltada para a descarbonização da economia do país por meio de investimentos em empresas e setores com iniciativas em curso. A ideia era colocar dinheiro em projetos que fornecessem caminhos verdes, sobretudo para a Indústria. A France 2030, como foi batizada, inspirou outras agendas ao redor do mundo, como a Agenda Verde da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), por exemplo.

No caso da aviação, a meta da agenda é conseguir, até 2030, construir um avião de baixa ou nenhuma emissão de CO2, o que deve ser atingido pela Elixir. Há ambições para produzir reatores modulares, veículos elétricos e biomedicamentos “made in France”. Tudo em linha com a meta europeia, ainda pendente de revisão, de reduzir as emissões de GEE em 40% até 2030, em comparação com o ano de 1990 — o número deveria ser atualizado antes da 30ª Conferência sobre Mudanças Climáticas (COP30) da Organização das Nações Unidas (ONU), mas discordâncias entre os países-membros impediram esse ajuste.

A Embraer, empresa brasileira que já forneceu cerca de 9 mil aviões desde que foi fundada, planeja ter modelos carbono zero até 2050, seguindo as metas das agências do setor. A francesa Airbus, por exemplo, segue o mesmo objetivo.

Incentivo estatal

Há dois anos, responsáveis pela France 2030 procuraram a Elixir, interessados em injetar dinheiro no negócio. “Eles já conheciam o mercado”, justifica Champenois, ao ser questionado a respeito do motivo de o governo escolher a empresa em um mercado relativamente dinâmico. Cerca de 13 milhões de euros (R$ 82 milhões) foram despendidos até agora pela França para a companhia construir outras plantas em La Rochelle e nos Estados Unidos, com mais 13 milhões de euros reunidos a partir de uma rodada privada de negócios. “Há muita expectativa no que está sendo feito aqui”, observa Lassus. “Imagina que, com 12 litros de gasolina por hora de voo, esse avião gasta menos do que um carro para fazer uma viagem de média distância, e emitindo menos gases ainda”, continua.

Lassus chegou a trabalhar no Brasil durante o processo de compra de 36 caças militares pelo governo brasileiro para a Força Aérea, em 2009. À época, ele esforçava-se para convencer o País a escolher a opção da francesa Dassault, mas, em 2013, a decisão foi pelo modelo Gripen da sueca Saab.

A tecnologia das peças de carbono é tratada como segredo industrial. Há uma fábrica própria apenas para produzi-las, ao lado do galpão da Elixir, no aeroporto de La Rochelle, onde apenas o pessoal autorizado pode entrar. Recentemente, quando a empresa instalou-se nos Estados Unidos, houve uma discussão sobre se as peças poderiam ser fabricadas lá — e a decisão, em razão do segredo, foi manter a produção apenas na França.

Escalar para decolar

Mas, apesar das promessas do projeto, um dos poucos da France 2030 que já estão no mercado, há limites nesse processo. Um deles está em escalar a produção, a partir do carbono, para aviões maiores, utilizados pelas companhias aéreas comerciais. Outra questão importante é a de emissões — em 2023, para se ter uma ideia, a aviação respondeu por significativos 2,5% do total de emissões globais de CO2, segundo dados da Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês). “Esse é um aspecto para o qual o setor aéreo como um todo ainda não encontrou uma solução”, pontua Richard Roas, que trabalhou por quase sete décadas nos projetos de outra gigante aeroespacial francesa, a Safran, sediada em Paris.

Também engenheiro de formação, Roas entende que, por um lado, as empresas do setor estão investindo mais recursos em métodos para diminuir as emissões. Mas, por outro, o mercado ainda gira muito em torno da aviação tradicional, “porque, nele, a segurança ocupa um lugar muito diferente de outras indústrias”, aponta, explicando que baixar o peso de um avião pode significar melhores métricas de sustentabilidade, porém afeta algumas outras funcionalidades. “É uma equação complexa”, completa. “Enquanto isso, podemos formar pilotos com uma pegada mais baixa de carbono”, reforça Champenois.

Outro dilema é a viabilidade do mercado. “Tem sido comum ouvir, na Europa, sobre projetos em diferentes setores que buscam criar métodos de produção de caráter ‘verde’. Na aviação, ainda mais. Há empresas alemãs, holandesas, há um monte de companhias francesas, todas com ideias muito interessantes. Mas elas não necessariamente chegam ao mercado — ou, quando chegam, nem sempre têm sucesso”, explica Roas.

Ele cita o exemplo da alemã Lilium, fundada em 2015 com planos de construir aviões elétricos. Na época, o frisson com o projeto fez a empresa chegar a juntar 1,5 bilhão de euros (R$ 6 bilhões) em investimentos. Dez anos depois, e somando um histórico de resgate de outros milhões de euros, está falida.

Na contramão, Lassus aposta tanto em mercados já estabelecidos quanto em emergentes, como o Brasil. Há alguns meses, durante uma feira do setor nos Estados Unidos, ele ouviu de um brasileiro que o modelo da Elixir “transformaria o Agronegócio” do País. “Se a demanda for por aviões pequenos, de baixo custo e seguros, então, ele está certo. E, desde então, estamos avaliando vender no Brasil”, revela. E conclui: “Afinal, é o Brasil que pode liderar essa agenda”.

Vinícius Mendes
Débora Faria
Vinícius Mendes
Débora Faria