A farta variedade de espécies amazônicas atrai cientistas de todo o mundo para o potencial curativo dessas plantas. Mas a força da selva poderia, também, ser caminho para o desenvolvimento sustentável da região.
No ano em que receberá a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP30) — em Belém, no Pará, coração da Amazônia —, o Brasil corre contra o tempo para apresentar ao planeta iniciativas ligadas à sua rica biodiversidade, composta por 46.975 espécies diferentes de plantas nativas e 8.333 de árvores, segundo a plataforma online Flora do Brasil 2020, que conta com dados coletados e validados por 979 pesquisadores de 224 instituições em 25 países. Com tamanha exuberância, seria de se esperar que o Brasil fosse uma potência no processamento de plantas medicinais e produção de medicamentos fitoterápicos, mas a ausência de estratégias públicas e a falta de interesse do capital privado colocam o País em uma posição pífia, segundo estudo do Instituto Escolhas.
De acordo com a consultoria de mercados indiana Fortune Business Insights, o mercado mundial de fitoterápicos foi avaliado em US$ 216,4 bilhões em 2023, com projeção para alcançar US$ 437 bilhões em 2032. Atualmente, a participação brasileira é de apenas 0,1% desse montante, com faturamento de US$ 173 milhões registrados em 2022, segundo dados do Anuário Estatístico do Mercado Farmacêutico, divulgado pela Anvisa em 2023. “Há um desprezo histórico quanto ao potencial de divisas dos medicamentos fitoterápicos.
Hoje, esse mercado depende das exigências sanitárias do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), quando o condutor deveria ser o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), que prometeu uma estratégia nacional para estruturar a cadeia de produção de fitoterápicos no Plano de Ação Para Neoindustrialização, no começo de 2024. Até agora, nada foi cumprido”, adverte Sergio Leitão, diretor-executivo do Instituto Escolhas.
Para o consumidor de fitoterápicos, basta uma visita a uma farmácia para constatar a esmagadora presença nas prateleiras de produtos à base de ginseng, maca peruana, kava-kava, castanha-da-índia e gingko biloba, entre outros extratos — todos de origem estrangeira. Maior indústria nacional do setor, no qual atua há 40 anos, a paranaense Herbarium tem uma produção mensal de 1,435 milhão de unidades, com cerca de 50 produtos em linha, entre cosméticos e medicamentos. “Praticamente todos os nossos extratos são trazidos de fora. Não temos parceria com qualquer associação ou comunidade da região amazônica”, lamenta Cristina Dislich Ropke, diretora técnica da Herbarium.
Os motivos, porém, não estão no preço ou no câmbio, como normalmente ocorre em outros setores produtivos. “O rito regulatório da Anvisa para os fitoterápicos é até mais rigoroso do que para os medicamentos sintéticos”, detalha. No momento, apenas três plantas brasileiras estão aptas a serem comercializadas em escala industrial, de acordo com os padrões de segurança da Anvisa: a espinheira-santa (indicada para gastrite e indigestão), o guaco (para gripes e problemas respiratórios) e a unha-de-gato (para doenças reumáticas e musculares em idosos). Apenas a terceira é endêmica da região amazônica. “Mas há o risco de ela sair da lista, em razão de novos estudos que ainda não atestaram a segurança toxicológica da planta como medicamento”, pondera a diretora.
Segundo Cristina, os extratos importados são de plantas usadas há séculos em seus respectivos países, com estudos científicos que comprovam a eficácia. Um dos carros-chefes da Herbarium é a kaloba, indicada para tratamento de infecções agudas respiratórias causadas por vírus, como resfriado, sinusite e bronquite não alérgica. O seu princípio ativo é a Pelargonium sidoides, uma planta originária da África do Sul, utilizada na medicina popular desde o século 17.
Em razão das travas regulatórias, surgem situações, no mínimo, inusitadas. “O Brasil tem se tornado importador de extratos e insumos da cadeia produtiva, com déficits comerciais em torno de R$ 2 bilhões anuais”, pontua Leitão, do Instituto Escolhas. Ele cita o jaborandi, planta abundante na Região Nordeste e usada em cosméticos, mas sem a aprovação da Anvisa para medicamentos. “Temos uma farmácia disponível no quintal, mas exportamos o jaborandi para que seja extraída de suas folhas a pilocarpina, insumo usado na produção de um colírio para tratamento de glaucoma, que retorna importado.”
Criada em 2006, a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos nasceu com objetivos grandiosos: garantir acesso seguro a plantas medicinais e fitoterápicos para os usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), com a promoção de práticas populares e tradicionais de uso caseiro, incluindo a agricultura familiar nas cadeias produtivas, além do fomento à pesquisa no setor. Em setembro de 2024, o Ministério da Saúde informou que investiu R$ 44 milhões em plantas medicinais, com a meta de atingir, inicialmente, 1.841 municípios e, até 2027, todas as cidades brasileiras. Em 2023, o investimento havia sido de R$ 8,5 milhões.
Em 2009, os fitoterápicos chegaram ao SUS por meio do Programa Farmácia Viva, uma iniciativa pioneira criada na década de 1980 pelo professor José de Abreu Matos, na Universidade Federal do Ceará (UFC). O programa consiste em estabelecer e acompanhar todas as etapas necessárias para a produção de fitoterápicos, que incluem o cultivo de espécies medicinais, coleta, processamento, armazenamento, manipulação dos ativos e distribuição, com as devidas orientações de uso. O Farmácia Viva no SUS segue o modelo das práticas integrativas e complementares aos métodos da medicina alopática, como a Acupuntura e a Homeopatia. Os resultados estão nas reduções do consumo de medicamentos e de tempo de internação.
Wagner Luiz Ramos Barbosa, professor na Faculdade de Farmácia da Universidade Federal do Pará (UFPA) e membro da Academia Brasileira de Ciências Farmacêuticas, observa que as intenções do programa são boas, mas o Farmácia Viva tem se mostrado pouco eficiente na prática. “Em 2024, a dotação inicial do Ministério da Saúde foi de R$ 11 milhões, mas caiu para R$ 5,5 milhões por causa das faltas de estrutura e mão de obra qualificada nas prefeituras. Fitoterapia não é massoterapia, técnica na qual basta treinar um profissional”, compara Barbosa.
De acordo com o pesquisador, quando se trata de plantas, é necessário haver estratégias específicas para cada município, que contemplem as plantas a serem priorizadas, a finalidade de cada uma e as técnicas de cultivo, armazenamento e processamento. Esses processos não são de responsabilidade das prefeituras, mas de políticas federais que envolvam o Ministério da Saúde. No entanto, completa o professor, há exceções. A Prefeitura de Toledo, no Paraná, por exemplo, adotou o uso da calêndula no tratamento de feridas graves resultantes de úlceras, queimaduras e hanseníase, capacitando funcionários e criando um ambulatório especializado para atendimento dos pacientes pelo SUS.
Atualmente, o programa Farmácia Viva oferece 13 fitoterápicos e plantas medicinais, nem todas de origem nativa: alcachofra, aroeira, babosa, cáscara-sagrada, espinheira-santa, guaco, garra-do-diabo, hortelã, isoflavona de soja, plantago, salgueiro e unha-de-gato. Para acesso pelo SUS, os produtos necessitam de prescrição médica. E, aí, surge outro gargalo — o Conselho Federal de Medicina (CFM) não reconhece a fitoterapia como uma especialidade médica. “Ministrei aulas por um ano na Faculdade de Medicina da UFPA, e os alunos ficaram fascinados, mas há uma pressão muito forte dos propagandistas dos grandes laboratórios internacionais. A fitoterapia deveria fazer parte não só da grade da Medicina, mas também da Fisioterapia. Pela complexidade do tema, deveria ser ensinada em pelo menos cinco semestres”, argumenta Barbosa.
Referência nacional na pesquisa de fitoterápicos, a UFPA pretende apresentar, na COP30, dez estudos em fase avançada de testes, que incluem, principalmente, extratos vegetais, óleos vegetais e bio-óleos de uxi, pupunha e inajá. Essas espécies apresentam bons resultados no tratamento de doenças infecciosas e contagiosas, como leishmaniose e Doença de Chagas. “Estudamos plantas da região, mas não necessariamente endêmicas da Amazônia, como o ajuru, usado no tratamento de diabetes, uma planta que cresce por aqui em regiões litorâneas, mas existe em outros países”, explica Barbosa.
Segundo o professor, falar em plantas inovadoras amazônicas é “um fetiche, cuja única consequência é a disparada de preços no mercado”, lembrando do açaí, um alimento local que registrou uma alta de preços após virar moda em outros centros. “Plantas medicinais e fitoterápicos devem priorizar o mercado interno, não são commodities”, afirma.
Em Manaus, capital do Amazonas, também de olho na COP30, o MDIC investiu R$ 11 milhões na ampliação, modernização e reestruturação do CBA, antigo Centro de Biotecnologia da Amazônia que, desde 2023, passou a ser Centro de Bionegócios da Amazônia. “Temos dialogado com populações locais e povos originários para entender as diretrizes e intervenções mais apropriadas. Há uma tese que defende a impossibilidade de escalar economicamente produtos amazônicos, pela falta de mão de obra e de beneficiamento, mas precisamos entender a sociobiodiversidade, a lógica de produção para poder atingir alguns mercados. Aí entram os fitoterápicos, como hoje ocorre com o artesanato”, conta Andrea Lanza, diretora de Bionegócios do CBA, acrescentando que os contatos iniciais apontam para um potencial de negócios nas comunidades próximas aos rios Purus e Madeira, que promovem a extração da andiroba e da copaíba. “Os recursos vão permitir a promoção de pesquisas de longo prazo”, esclarece.
Há 20 anos, em parceria com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam), o CBA investiga a aplicação dos sucos à base de açaí e bacaba no tratamento de aterosclerose e obesidade. Os estudos iniciais revelam que as frutas são ricas em compostos antioxidantes que atuam na quebra de células lipídicas do organismo. Por enquanto, não há um prazo definido para a conclusão da pesquisa, estudos e apreciação da Anvisa.
Entretanto, a integração da cadeia produtiva à agricultura familiar ainda é pontual. Em parceria com Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD-Brasil), a SOS Amazônia lançou o projeto Fitoterápicos da Amazônia. Por meio de edital, foram selecionadas quatro organizações de agricultores familiares e extrativistas dos Estados do Pará e do Amapá, que receberam R$ 50 mil cada. “É um grande desafio. A comunidade científica precisa produzir mais monografias para despertar a atenção do governo e atrair investimentos das indústrias para a região”, defende Adeilson Lopes, coordenador do Programa de Negócios Florestais Sustentáveis da SOS Amazônia.
Segundo ele, os recursos são voltados para a expansão produtiva e a melhoria da qualidade dos produtos oriundos das plantas medicinais, como andiroba, copaíba e jaborandi. “Com isso, crescem as possibilidades de acesso ao mercado. Juntas, as organizações contempladas poderão faturar cerca de R$ 2 milhões ao ano, somente com as cadeias de plantas”, afirma o coordenador.