Artigo

Dra. Nise, o afeto como cura

Paulo Delgado
é sociólogo, cientista político e diretor de Relações Institucionais da FecomercioSP
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Paulo Delgado
é sociólogo, cientista político e diretor de Relações Institucionais da FecomercioSP

Em agosto de 1989, fui recebido pela Dra. Nise da Silveira em seu apartamento no bairro de Botafogo, na capital do Rio de Janeiro, onde apresentei o esboço do Projeto de Lei (PL) que propunha a reestruturação da atenção ao doente mental brasileiro, tornando obrigatória a humanização do tratamento aos pacientes. Após a aprovação do PL, em outubro, dei entrada no Congresso Nacional na proposta de extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por serviços terapêuticos e assistenciais, que se tornou lei nacional 12 anos depois

Assim, continuava no plano legislativo a pioneira luta de Dra. Nise pela desmanicomialização da atenção e do cuidado ao doente mental brasileiro, luta iniciada por ela nos anos 1940 e que continua até hoje, com avanços e retrocessos, compondo o passo a passo da reforma psiquiátrica no País.

Nise sabia que a doença não é um fracasso, mas um episódio da vida de muitas pessoas o qual cabe à medicina enfrentar sem preconceitos para poder ajudar, de fato, os que sofrem. Não aceitava a ideia dos tratamentos violentos e autoritários comuns na época, tampouco a medicina carceral que, para muitos, significava prisão perpétua [leia mais na página 44 desta edição].

Sem perder a fé na humanidade, praticou o saber da paciência e do afeto, enxergando a dor do outro como se fosse a própria. E, assim, baseou a sua ação nos princípios da boa terapia, aquela compreendida pelos profissionais da área médica, bem como pelo paciente e pela família. Não tenho dúvida em dizer que a lei atual (10.216/2001), que tive a honra de apresentar logo depois da Constituinte, é mesmo uma lei descoberta, pois já era praticada antes de ser escrita por Nise como o maior exemplo da psiquiatria brasileira — terapia pioneira, inclusive, internacionalmente.

As ideias acolhedoras de Nise, como as desenvolvidas na Casa das Palmeiras — um serviço aberto precursor dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) —, permitiram criar equipamentos e terapias, salvar pessoas do esquecimento e mudar mentalidades e procedimentos. As estatísticas de depressão e intoxicação por medicamentos aumentam a cada dia, exigindo modéstia da medicina e tornando clara a necessidade de melhor escuta do sofrimento. 

A reforma psiquiátrica não pode ser a luta de um salmão envenenado num rio poluído. A vida corre por meio de desafios profissionais, comunitários, familiares e sanitários. Ninguém pode desaprender a nadar contra a corrente de infelicidade pessoal e por desinformação, ninguém deveria maltratar o outro. Boas escolhas dependem de procura, mas frustram sociedades sem oferta. O avanço da ciência e a melhor qualidade dos medicamentos podem, e muito, contribuir para diminuir os preconceitos contra a doença mental, ainda uma das mais desamparadas das enfermidades. E para ajudar as famílias, é preciso sempre mais responsabilidade pública para acolher e tratar o sofrimento mental. 

Referenciar a memória de Nise é influenciar na qualidade e na continuidade da boa política pública, além de sempre estar ao lado de quem sofre de preconceito e estigma por adoecer. A doença mental sempre foi difícil de encaixar em qualquer baralho do poder. Só que, com a evolução dos direitos humanos, os princípios da igualdade e oferta a todos de um tratamento informado e justo se tornaram universais.

Está muito em moda na medicina de políticos o doente fazer parte do cortejo do médico. Na saude mental, como o doente é o mais desprotegido dos cidadãos, a medicina costuma não correr risco de negar-lhe o tratamento e tirar dele a cidadania. Adular o paciente sem poder e cuidar em liberdade é o que fez Dra. Nise da Silveira.

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