Quando a Cidade do Rio de Janeiro registrou 44ºC de temperatura — um recorde desde o início, em 2014 —, o sistema de Saúde sentiu. Nos primeiros 18 dias de fevereiro, segundo a Secretaria Municipal de Saúde, quase 2,5 mil pessoas receberam atendimento nas unidades de emergência do Sistema Único de Saúde (SUS). Os dados da Secretaria apontam que, nos dias mais quentes dos últimos 12 anos, houve um aumento na taxa de mortalidade e piora no quadro de doenças crônicas entre idosos.
No outro extremo das mudanças climáticas, o excesso de chuva e as consequentes inundações e deslizamentos também afetam a saúde da população. Dados do Centro de Pesquisa em Epidemiologia de Desastres (Cred) classificam o Brasil como o sétimo país do mundo com mais mortes ligadas a inundações. De 2021 até maio de 2024, mais de 3,5 mil brasileiros morreram em mais de 100 enchentes.
“Na Europa, fala-se muito de ondas de calor que matam velhinhos. Aqui, não é só isso. O calor significa dengue, diarreia, insegurança alimentar e colapso urbano”, explica Christovam Barcellos, professor no Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT), da Fiocruz. “No caso das inundações, a Defesa Civil faz a contagem de quantas pessoas morrem imediatamente, mas contabilizam somente esses casos mais evidentes. No Rio Grande do Sul, no ano passado, houve, na sequência, um surto de dengue e leptospirose. Quando as pessoas perdem tudo, elas também entram em quadros de depressão e surtos de violência”, acrescenta.
Um estudo internacional, liderado por Camilo Mora, da Universidade do Havaí, nos Estados Unidos, e publicado na revista Nature, revelou que 58% das doenças infecciosas humanas já foram agravadas, em algum momento, por eventos associados às mudanças climáticas — calor extremo, secas, enchentes, incêndios, e elevação do nível do mar. E atingem outras áreas da saúde pública mencionados por Barcellos, como segurança alimentar e saúde mental.
Não é só no Rio de Janeiro que o calor mata — a história repete-se no Brasil todo. Outro estudo, desta vez publicado pelo periódico científico PLOS One, avaliou a correlação entre a taxa de mortalidade e os eventos de temperatura extrema, que ocorre quando a temperatura máxima sobe cinco a sete graus acima da média, por cinco dias consecutivos, nas maiores áreas urbanas do País. De 2000 a 2018, 48 mil pessoas morreram por causa das altas temperaturas, e a frequência das ondas de calor tornou-se quase quatro vezes maior desde os anos 1970.
“O calor não causa a doença, mas pode agravá-la. Idosos com problemas cardiovasculares, por exemplo, correm risco de ter uma crise aguda. E também afeta quem não tem nada, como quando há uma desidratação intensa”, destaca Nelson Gouveia, professor no Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). “As crianças também podem sofrer. Não nascemos completamente prontos, o controle da temperatura corporal é algo que se aprimora ao longo dos anos”, observa.
Há ainda outras doenças associadas ao calor. O tempo seco e quente favorece o surgimento de ambientes propícios à reprodução de mosquitos — e intensifica a incidência de doenças virais como dengue, zika e chicungunha. “Os dados mostram que a dengue está saindo da região equatorial, que é mais quente, e chegando a outros polos, as zonas temperadas. E o próprio hábito do mosquito muda numa onda de calor, e ele pica mais”, informa Gouveia. “As pessoas pensam que só as chuvas aumentam os casos de dengue, mas minha pesquisa mostrou também um processo inverso. Com a seca, as pessoas começam a estocar água e pegá-la de qualquer lugar, despejando-a em barril, em balde. E esses recipientes têm sido utilizados pelo mosquito para se reproduzir”, complementa Barcellos, do ICICT.
Além disso, a escassez de chuva piora a qualidade do ar e agrava os quadros de doenças respiratórias, como asma e bronquite. Para pacientes com doença pulmonar obstrutiva crônica, como enfisema, é ainda mais difícil respirar em dias quentes.
E a falta de água mexe interfere diretamente na quantidade e na qualidade da comida disponível. Uma série de pesquisas, publicada pela revista científica Lancet, mostra que a temperatura extrema não diminui apenas as colheitas, como também reduz o valor nutricional dos alimentos. O excesso de CO2, principal gás do efeito estufa, diminui a quantidade de ferro, zinco e proteínas disponíveis nos vegetais.
Em 2024, segundo o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), o Brasil encarou a pior seca desde os anos 1970 e houve um agravamento na intensidade e na duração desses eventos. Cerca de 30% dos municípios sofreram com a falta de chuvas. Embora os dados mostrem que a insegurança alimentar tem caído desde 2023, mais de 27 milhões de brasileiros ainda passam fome.
Se a falta de água prejudica a agricultura e o abastecimento de alimentos, o excesso dela traz efeitos semelhantes. As enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul, no ano passado, puseram em risco a produção agrícola do Estado. As perdas atingiram lavouras de soja, arroz, trigo e milho, além dos setores de carne e laticínios, comprometendo os abastecimentos local e nacional. “As pessoas perderam o gado, perderam o solo. Não tinham onde plantar. Então, essa situação gera uma insegurança alimentar enorme, atingindo principalmente o pequeno agricultor”, aponta Barcellos.
A água, além de espalhar a fome, carrega uma série de outras doenças, como dengue e leptospirose, logo após as inundações, segundo Barcellos. A pesquisa liderada pelo professor Mora corrobora a fala do pesquisador brasileiro. Segundo esse estudo, os alagamentos elevam os casos de leptospirose, hepatites, cólera e diarreia, tudo por conta da contaminação da água por esgoto e urina de ratos. E, como se sabe a cada verão, a água parada, ainda que limpa, serve de criadouro para mosquitos transmissores de dengue, chicungunha e zika.
Algumas doenças e mortes não entram na conta das consequências dos eventos climáticos extremos. Mas deveriam. Em Santa Catarina, após os alagamentos de 2008, de acordo com Barcellos, houve um aumento inesperado de Acidente Vascular Cerebral (AVC), em decorrência do estresse e das crises nervosas de quem havia perdido tudo. Já o calor exacerba o consumo de álcool. “Em nossos estudos, identificamos um aumento no número de homicídios e acidentes de trânsito em dias de temperaturas extremas. As pessoas acabam bebendo mais, irritando-se mais”, afirma Gouveia, da FMUSP.
A proximidade da 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP30), cuja cidade-sede será Belém, no Pará, acelerou as tentativas do governo federal de estruturar respostas aos impactos das mudanças climáticas para a Saúde pública. O Ministério da Saúde (MS) criou uma coordenação específica para o tema e desenvolveu uma estratégia com diretrizes que envolvem desde infraestrutura até resposta emergencial. “O Ministério da Saúde tem um plano bastante detalhado de como a área tem de se preparar para esse novo normal. Há planejamentos sobre onde construir unidades de Saúde para que não sejam afetadas por enchentes e não falte energia em casos de blackout”, detalha Gouveia.
Em paralelo, municípios como a capital paulista também têm elaborado planos locais, mas a implementação ainda lida com entraves concretos de orçamento e infraestrutura, além dos sociais, como pobreza e desigualdade. “Vivemos uma mudança climática num território já vulnerável. As pessoas não têm acesso aos serviços. Até em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro — nem precisa falar do interior do Nordeste — falta água nos dias quentes. O clima escancara o que já é injusto”, finaliza Barcellos.