Enquanto a população brasileira luta contra o aumento das taxas de obesidade, o País torna-se um mercado em expansão para intervenções médicas, como a cirurgia bariátrica e medicamentos para perda de peso, incluindo Ozempic e Wegovy.
A Novo Nordisk, gigante farmacêutica dinamarquesa por trás do bem-sucedido medicamento para diabetes Ozempic, classifica o Brasil como um de seus cinco principais mercados mundiais. A empresa considera que o País também é estratégico para as vendas do Wegovy, um medicamento feito com o mesmo ingrediente ativo do Ozempic, mas direcionado especificamente para a perda de peso.
“Na América Latina, o Brasil é o primeiro, e até agora o único, país a receber o medicamento”, afirma a gerente nacional da Novo Nordisk, Isabella Wanderley. Embora a farmacêutica não divulgue números de vendas locais, dados da empresa de inteligência IQVIA sugerem que 178 mil unidades foram vendidas apenas nos dois primeiros meses após o Wegovy ter sido disponibilizado, em agosto de 2024. Em 2023, as vendas do Ozempic ultrapassaram R$ 3 bilhões.
No entanto, essas tendências de mercado contrapõem-se drasticamente às persistentes lacunas nas políticas públicas de saúde voltadas para a prevenção e tratamento da obesidade no Brasil. Profissionais de saúde alertam que o tratamento, muitas vezes, não chega àqueles que mais precisam.
Pesquisas do governo sobre saúde mostram que, em 2019, mais de 60% dos adultos brasileiros estavam com sobrepeso — com índice de massa corporal acima de 25 —, contra 40% em 2002. As taxas de obesidade — quando o índice de massa corporal está acima de 30 — mais que dobraram no mesmo período, e as projeções indicam que quase 30% da população pode estar obesa até 2030.
Marcio Mancini, pesquisador sobre obesidade na Universidade de São Paulo (USP), explica que o aumento é resultado de mudanças globais de estilo de vida, incluindo rotinas sedentárias e um maior consumo de alimentos ultraprocessados, com alto teor de gordura e açúcar.
Apesar de alimentos básicos, como arroz e feijão, continuarem centrais na dieta brasileira, produtos ultraprocessados — como refrigerantes, alimentos congelados e macarrão instantâneo — agora representam cerca de 20% da ingestão diária de calorias, chegando a 27% entre adolescentes.
Embora muito abaixo dos níveis observados nos Estados Unidos, onde esses produtos representam a maior parte das calorias ingeridas pela população, alimentos ultraprocessados estão se tornando mais baratos e mais prevalentes, especialmente entre brasileiros de baixa renda e, até mesmo, em áreas rurais, onde é mais fácil encontrar alimentos frescos.
Paulo Augusto Miranda, presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), aponta que o aumento da obesidade no País não foi necessariamente acompanhado de um maior acesso a cuidados de saúde especializados. Mancini acrescenta que, no Sistema Único de Saúde (SUS), do qual depende a maioria da população, os clínicos gerais são frequentemente encarregados do tratamento e nem sempre estão preparados para fornecer cuidados específicos.
O SUS não cobre medicamentos para obesidade. As opções de tratamento limitam-se a aconselhamento sobre estilo de vida e cirurgia bariátrica, normalmente disponível somente após um longo período de espera.
Em 2023, de acordo com dados da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM), mais de 80 mil brasileiros foram submetidos à cirurgia bariátrica, mais que o dobro de 2011. No entanto, menos de 10% desses procedimentos foram realizados no sistema público de saúde. Mancini observa que muitos pacientes recorrem à cirurgia porque não têm acesso a outros tratamentos. A SBCBM, por sua vez, estima que mais de 8 milhões de pessoas no Brasil se qualificariam para procedimentos bariátricos.
As organizações médicas têm pressionado o Estado para que medicamentos para o tratamento da obesidade sejam incluídos no sistema público de saúde, mas as barreiras de custo são significativas. Em 2022, o Ministério da Saúde vetou, citando os altos custos, a inclusão em programas públicos de um medicamento para obesidade de geração anterior, o Saxenda.
O tratamento com Ozempic ou Wegovy pode custar entre R$ 1 mil e R$ 2,4 mil por mês — o que significa que a dose mais barata custa aproximadamente o mesmo que um salário mínimo. “A maioria das pessoas a quem seria recomendado tratamento medicamentoso para a obesidade não tem acesso a esses medicamentos, principalmente em razão do seu custo”, destaca Miranda, do SBEM.
Mancini, da USP, também ressalta que muitas pessoas com acesso ao Ozempic ou ao Wegovy não são pacientes que realmente enfrentam riscos à saúde decorrentes da obesidade, já que são motivadas principalmente por razões estéticas e, com frequência, burlam as regras de prescrição para obter os medicamentos para perder peso.
Vale lembrar que o Brasil é o país que mais realiza cirurgias plásticas no mundo — e dentre esses procedimentos, o principal é a lipoaspiração, segundo dados da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica e Estética (Isaps, na sigla em inglês). O pesquisador afirma ainda que, embora o aperfeiçoamento do tratamento seja importante, o caminho ideal para lidar com a obesidade é a prevenção, o que também depende de políticas públicas. Ele cita um melhor acesso a áreas para atividade física nas cidades e regulamentação para desencorajar o consumo de alimentos ultraprocessados.
Em 2022, o Brasil lançou um novo sistema de rotulagem de alimentos que alerta os consumidores sobre altos porcentuais de açúcar e gordura nos produtos. Um esforço para aumentar impostos sobre alimentos ultraprocessados na Reforma Tributária, no entanto, foi rejeitado pelo Congresso recentemente.
A Novo Nordisk esteve em discussão com o governo federal e reguladores para pressionar pela inclusão do medicamento no sistema público brasileiro. No entanto, a empresa admite que é um processo longo, prejudicado principalmente pelos altos custos para os cofres públicos e pela demanda potencial que um país como o Brasil representaria para a produção do medicamento. Isabella, gerente da multinacional, menciona que, porém, alguns governos locais, como o do Distrito Federal, têm fornecido o Saxenda por meio de programas públicos menores de tratamento da obesidade e diabetes.
Tanto Ozempic quanto Wegovy são nomes comerciais para a semaglutida, cuja patente vence em 2026. A Novo Nordisk está tentando estender esse prazo nos tribunais — ao lado de outras empresas farmacêuticas estrangeiras que lutam pela prorrogação da patente de pelo menos 60 medicamentos —, mas uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de 2021, torna isso improvável.
Uma vez expirada a patente, qualquer empresa farmacêutica poderá produzir o medicamento, e já existe uma corrida em andamento por esse mercado. Os medicamentos genéricos no Brasil devem ser, pelo menos, 35% mais baratos do que os de marca, e a concorrência muitas vezes reduz os preços, o que permite que o sistema público de saúde possa adquiri-los.
No início de 2024, o presidente Lula participou da inauguração de uma fábrica da empresa farmacêutica EMS, que pretende produzir medicamentos para diabetes e obesidade, incluindo a semaglutida, assim que as patentes expirarem. O aumento da oferta desses medicamentos pode estar perto de acontecer no Brasil, mas os desafios para abordar a obesidade de forma abrangente permanecerão.