Um paralelo possível entre os alimentos ultraprocessados e o cigarro é que ambos são responsáveis diretos por diversas doenças graves e mortes prematuras. Além disso, compartilham o poderio das indústrias que os produzem e, no caso dos alimentos, o baixo custo para o consumidor em comparação aos itens in natura. O fato é que a popularização do consumo de industrializados já chegou às estatísticas: o índice de obesidade cresce entre os mais pobres.
Em 2023, a Fundação Getulio Vargas (FGV) publicou um estudo sobre o tema a partir dos dados da Pesquisa Nacional em Saúde (PNS) e da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), ambas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo o documento, apesar de a obesidade ter crescido em países ricos e pobres, há um desequilíbrio entre consumo e gasto calórico nas populações de baixa renda. E alguns motivos que apontam para uma vulnerabilidade maior nessa parcela da sociedade estão relacionados ao acesso a alimentos mais baratos e pobres em nutrientes, com alta densidade calórica. Ainda, a baixa escolaridade limita a compreensão das informações nutricionais, impactando os hábitos alimentares.
“São formulações atraentes e viciantes, produzidas por empresas transnacionais que investem parte do seu lucro em estratégias agressivas de marketing e lobby contra a regulamentação”, afirmou Carlos Monteiro, fundador do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP), durante o Congresso Internacional de Obesidade (ICO), que aconteceu em junho, na cidade de São Paulo.
A questão não para na falta de acesso à informação, mas também cabe no bolso. Um relatório publicado em 2021 pela ACT Promoção da Saúde — ONG que atua na promoção e defesa de políticas de saúde — aponta que, de junho de 2006 a março de 2021, a inflação das frutas foi 89% maior do que o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) e 114% maior do que “açúcares e derivados”. O documento também ressalta que os refrigerantes apresentaram oscilação de preço muito inferior à das frutas, tornando-se cerca de 43% mais baratos em 2021 em comparação a 2006. Na avaliação de Monteiro, a publicidade dos ultraprocessados, assim como ocorreu com o cigarro, deve ser proibida ou fortemente restringida. “É necessário inserir avisos na parte frontal das embalagens, semelhantes aos usados nos maços de cigarro”, afirmou, durante o evento. O especialista defendeu, ainda, a proibição da venda de ultraprocessados em escolas e unidades de saúde, além do aumento da tributação, com a arrecadação revertida para o subsídio da produção e distribuição de alimentos frescos.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), estima-se que 37 milhões de crianças menores de cinco anos estejam sofrendo com o excesso de peso. O que antes era uma questão dos países de renda alta, o sobrepeso e a obesidade infantil são crescentes no mundo emergente. Na África, o número de crianças dessa faixa etária que lidam com esse problema aumentou quase 23% desde 2000.
Na feira é mais caro
De acordo com a endocrinologista Maria Edna de Melo, da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso), houve uma mudança muito grande no ambiente alimentar com o aparecimento e o crescimento dos alimentos ultraprocessados, que são de baixo custo, de alta palatabilidade e de fáceis preparo e armazenamento. Além disso, há fortes incentivos públicos para a produção de commodities como milho, açúcar e soja, em detrimento de itens consumidos diretamente pela população. “A produção de feijão, por exemplo, vem diminuindo em área plantada, enquanto a das commodities, aumentando. Isso leva a uma inflação diferenciada entre os alimentos — os frescos e minimamente processados acabam ficando mais caros”, lamenta Maria Edna.
É importante também conscientizar a população sobre os benefícios desse tipo de comida. “Temos de descascar mais e desembalar menos. Lasanha e pizza congelada, por exemplo, podem até ser mais gostosos por causa do excesso de açúcar, gordura e aditivos, mas são extremamente nocivos à saúde”, explica o também endocrinologista Bruno Geloneze, do Departamento Científico da Abeso.
A questão do estigma
O sobrepeso e a obesidade são definidos como o resultado de um desequilíbrio entre ingestão energética (dieta) e gasto energético (atividade física). Na maioria dos casos, no entanto, a obesidade é uma doença complexa e multifatorial, que não se resume à equação entre consumo e gasto. Um desses fatores é a existência de ambientes chamados obesogênicos, que promovem (ou facilitam) a escolha por alimentos não saudáveis, além de dificultar a prática de atividades físicas, o que leva ao sedentarismo. “Mais importante que dispormos de academias particulares, por exemplo, é ampliarmos a oferta de parques públicos, limpos, seguros e acessíveis para a prática de exercícios”, observa Geloneze.
O desconhecimento do caráter complexo de ambas as condições, afirma a endocrinologista Cinthya Valério, leva a estigmas. Existem, segundo ela, aqueles relacionados à própria doença: o problema é falta de força de vontade, como se fosse uma escolha pessoal, além do desinteresse por um estilo de vida mais saudável por parte de quem padece com essa enfermidade. “Há também estigmas relacionados ao tratamento, como se quem busca a ajuda de medicação ou cirurgia estivesse ‘roubando’, quando o correto seria a perda de peso apenas com a mudança de estilo de vida”, analisa.
Há ainda, de acordo com Cinthya, um outro estigma, o internalizado. “Por conviver com pessoas que pensam dessa maneira, numa sociedade que divulga essa mentalidade, os próprios pacientes começam a acreditar na falácia de que é culpa deles mesmos, que eles é que não levam a sério a própria saúde e que, por causa de uma falha pessoal, vão acabar sempre em recaídas e reganho de peso”, relata.
A especialista conclui que a mentalidade de estigma em relação à obesidade e ao próprio tratamento é fruto da cultura, oriundo de ideias divulgadas amplamente na mídia, nas internet, dentro de casa e nos ambientes sociais e de trabalho. Falar sobre o problema, afirma, é o primeiro passo de um longo caminho para mudar essa perspectiva.