Em um cenário repleto de impasses e entraves, o Brasil já completou mais de 35 anos da sua Constituição Federal. Nos marcos do pacto constitucional de 1988, os municípios nacionais adquiriram autonomia como ente federativo. Contudo, o fortalecimento institucional dessas cidades ainda busca trazer respostas locais mais efetivas às demandas da população, pois a descentralização de competências não foi seguida do aumento das suas capacidades estatais para a provisão de serviços e políticas públicas.
Essas respostas dependem das capacidades estatais, que são a base para qualquer ação governamental, como recursos para o desempenho das funções de governo e a prestação de serviços públicos; regras claras que medeiam as relações e ações dos atores; e habilidades e conhecimento técnico para formular e administrar esses serviços.
É notório que as capacidades estatais dos governos locais brasileiros são desiguais, com assimetrias na formulação e na implementação de soluções públicas eficientes. Esse cenário está frequentemente ancorado em desafios estruturais, como a limitada capacidade de arrecadação tributária. Essa dinâmica, contudo, não é exclusiva do Brasil. Diversos países latino-americanos também adotaram processos de descentralização que transferiram, progressivamente, atribuições aos entes subnacionais. Todavia, essa delegação de competências nem sempre foi acompanhada do fortalecimento das capacidades locais, resultando, em muitos casos, em avanços modestos quanto a uma boa gestão de políticas públicas e à ampliação da autonomia decisória dos governos subnacionais.
O Brasil desenvolveu muito bem sistemas de políticas públicas intergovernamentais, como o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (Suas), delegando aos governos locais a responsabilidade de implementar projetos desenhados no governo central. Mas o histórico de estudos sobre o funcionamento desses sistemas mostra que a própria implementação depende das condições de adaptação e transformação do desenho e dos recursos disponibilizados em serviços de atendimento ao cidadão. Depende também do papel do governo central em apoiar o desenvolvimento das capacidades estatais no nível municipal.
É nesse ponto que a gestão de pessoas assume um papel estratégico. A capacidade de recrutar, administrar, capacitar, valorizar e reter profissionais comprometidos é uma das tarefas mais importantes da administração pública. Estudos sobre competências estatais mostram que Estados e governos mais efetivos são os que oferecem um serviço público profissionalizado e capaz de lidar com pressões clientelistas e patrimonialistas.
Os municípios brasileiros e latino-americanos são loci de inovação diária. Os gestores municipais apresentam-se como o ponto de contato mais próximo do Estado com o cidadão, com conhecimento empírico sobre os obstáculos concretos do seu território, o que os posiciona como agentes centrais na formulação e na adaptação de soluções responsivas.
Aqui, existem duas questões complementares. Primeiro, a dificuldade de documentar e disseminar casos exitosos de mais de 5 mil municípios traz à tona a demanda de um sistema de coordenação e multiplicação para transformar o ocasional em cada vez mais frequente. Segundo, é fundamental aprofundar a compreensão sobre a situação das administrações públicas a fim de garantir que cada uma das cidades brasileiras e latino-americanas possa ter condições de executar políticas públicas de qualidade.
É nesse sentido que o Movimento Pessoas à Frente, ao lado da Fundação Getulio Vargas (FGV), do INCT Qualigov e do Centro de Administração para o Desenvolvimento (CLAD), articula uma rede de pesquisadores e especialistas em cooperação com instituições de ensino superior e centros de pesquisa de excelência na América Latina. O propósito comum é fortalecer a produção acadêmica no campo das capacidades estatais locais, promovendo um espaço de reflexão e intercâmbio de experiências sobre as provocações contemporâneas da administração pública subnacional. Como marco inicial dessa agenda colaborativa, será realizado um workshop de pesquisa, nos próximos dias 9 e 10 de junho, com a presença de 25 especialistas de todo o continente.
A consolidação de uma agenda latino-americana sobre capacidades estatais requer, porém, mais do que o mapeamento das lacunas, implicando o avanço da construção de referenciais analíticos, metodologias comparativas e instrumentos aplicáveis à realidade dos governos locais. Faz-se necessário, portanto, avançar na construção de materiais que visem trazer diretrizes e propostas de desenvolvimento dessas capacidades estatais nos governos.
Mais do que uma questão técnica, trata-se de um imperativo democrático e de desenvolvimento de um Estado preocupado com o combate às desigualdades sociais. A habilidade de os governos locais no Brasil e na América Latina promoverem os desenvolvimentos social e econômico e lidarem com temas emergentes passa pelo ativo mais importante do setor público: as pessoas que fazem a administração pública.
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