Reformar para desburocratizar

10 de outubro de 2024

V

“Vamos supor que eu seja proprietário de quatro lojas de varejo: duas em Minas Gerais e outras duas em São Paulo”, começa Fábio Pina, assessor econômico da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP). “Se elas estiverem em cidades diferentes, eu terei que cumprir com quatro regras distintas de uma mesma agência: o Procon. São duas legislações estaduais e as normas de cada município. Agora, imagine isso em diversas esferas de atuação do Estado: vigilâncias sanitárias, liberação de alvarás, etc.?”, continua. “É uma burocracia enorme!”.

A imagem do empreendedor que precisa lidar com regras distintas de um mesmo aspecto do negócio não é um diagnóstico apenas econômico, mas, antes de tudo, uma percepção popular. Em 2017, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) fez uma pesquisa perguntando aos brasileiros se eles acham o País burocrático. Oito em cada dez (84%) entrevistados responderam positivamente — e, dentro desse universo, 78% disseram que acreditam que o excesso de entraves da máquina pública acaba atrapalhando o desenvolvimento nacional. No fim, dois terços (65%) dos ouvidos afirmaram que essa deveria ser uma agenda prioritária do Brasil. 

Os anos se passaram, mas a realidade parece não ter mudado. Indicadores internacionais confirmam essa análise ao abordar a facilidade de abrir empresas. O Índice de Burocracia na América Latina, um relatório do think tank Atlas Network, dos Estados Unidos, mostrou que, em 2022, uma empresa comum levava, em média, 180 horas (ou 7,5 dias) para cumprir todos os trâmites burocráticos no Brasil e começar a operar. A maior parte desse tempo (57%) era gasta com a administração das operações. Apesar do longo prazo, o País obteve o melhor desempenho entre os países latino-americanos pesquisados.

Não é por acaso que há críticas mais vorazes sobre essa situação na região, como a do economista mexicano Luís de la Calle, que chama isso de uma “economia da extorsão”. Ele argumenta que, no dia a dia população na América Latina — especialmente no México, o seu foco de estudo —, ela precisa lidar com uma série de trâmites complicados, como concessões, normas e impostos, apenas para manter os negócios. “Isso é o que chamamos de tramitologia”, afirma Roberto Salinas León, diretor-executivo da Atlas.

Analisando o caso mexicano, Calle calcula que, sem esses excessos, o volume de investimentos estrangeiros no país seria três vezes maior do que o atual. Além da proximidade com a maior economia do planeta, os Estados Unidos, o México ainda leva a vantagem de contar com um mercado interno dinâmico e forte — e, tal como o Brasil, marcado por pequenas e médias empresas que dão a tônica da rotina econômica, sempre dispostas a investir.

É um cenário que se assemelha ao brasileiro, marcado por excessiva burocracia, baixos investimentos e complexo acesso ao crédito. “As taxas de juros são muito elevadas. Sem contar as poucas linhas de financiamento para abertura de novos negócios”, lamenta Geciane Porto, professora na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP). 

Mobilização

Todo esse estado de coisas tem mobilizado setores produtivos em torno de uma ampla agenda de modernização do Estado brasileiro. A ideia é atacar, em primeiro plano, os excessos da máquina pública do País, otimizando recursos e o trabalho dos servidores em direção a melhores serviços, sobretudo para as camadas mais pobres. A avaliação central é que, atualmente, além de despender dinheiro demais para operar e ser muito “inchado”, o Estado ainda oferece contrapartidas ruins que, no limite, aprofundam a desigualdade, já que são as classes menos favorecidas que mais dependem dessas compensações, como educação e saúde.

De acordo com Pina, da FecomercioSP, tocar a Reforma Administrativa teria efeitos significativos sobre essa realidade, já que tornaria o funcionamento do Estado mais eficiente, “e burocracia e eficiência andam de mãos dadas”, determina. O ponto central, para o economista, é que o Brasil cria muitas regras, nem sempre razoáveis — ou seja, que se mostram simples e precisas ao mesmo tempo. Ao contrário, surgem majoritariamente para ampliar o controle estatal. “Ninguém se pergunta, durante esses processos, quais serão os custos públicos dessa nova definição que estamos criando”, analisa. “O problema disso é que o Estado, em algumas atividades, se tornou um fim em si mesmo: gastos muito elevados, prazos enormes e uma tentativa de controlar tudo o tempo todo que só eleva ainda mais a burocracia”, completa.

Uma das propostas que vários desses setores já apresentam a autoridades políticas é a revisão dos modelos de avaliação e valorização dos servidores. O diagnóstico é que, do jeito que está, esses funcionários prosseguem nas carreiras sem que nenhum mecanismo de mensuração do desempenho seja utilizado para avaliar se o avanço é justo. Na ponta final, o serviço público permanece ruim, porque não existe preocupação em melhorá-lo. Em paralelo, o orçamento vai ficando maior para sustentar essa máquina, fortalecendo, por consequência, os processos burocráticos.

Uma reforma teria, então, o papel de dinamizar toda essa operação, eliminando cargos obsoletos, mudando regras sobre desempenho, revendo lógicas salariais e de estabilidade e alterando padrões de governança. “E não apenas isso”, prossegue Pina. “É preciso que Estado invista mais fortemente em tecnologia. Hoje, há muitos serviços que podem ser ofertados sem nenhuma necessidade de ir a um cartório, por exemplo, ou de recolher uma assinatura”, continua.

Nesse sentido, o Brasil já tem algo a oferecer: o Gov.br, aplicativo criado em 2019 com o objetivo de centralizar a maior parte das demandas dos cidadãos em um único lugar — e se valendo de um dispositivo amplamente popular, o smartphone. Em março deste ano, cerca de 150 milhões de brasileiros estavam cadastrados, além de um total de 4,2 mil serviços disponíveis. Análises apontam que o aplicativo deu um salto quantitativo durante a pandemia, quando se tornou o principal meio de acesso ao benefício do Auxílio Emergencial, criado, à época, para conter os efeitos da crise sanitária. 

Segundo Pina, é o começo do caminho. “Trata-se de um exemplo extremamente positivo. O próximo passo é tirar servidores de tarefas repetitivas, que podem ser digitalizadas, e inseri-los em atividades mais estratégicas. Mas estou otimista, temos direções para seguir”, finaliza. 

Vinícius Mendes Débora Faria
Vinícius Mendes Débora Faria