“Tem que ver como o Estado arrecada e gasta o dinheiro”, alerta Sérgio Costa, enquanto busca uma mesa vazia pelo saguão do Instituto Ibero-Americano de Berlim, na Alemanha. A conversa começara momentos antes, informal, na entrada do edifício, sobre os “problemas do Brasil” visto por quem que vive há tanto tempo no exterior. Hoje diretor do Instituto de Estudos Latino-Americanos (LAI, em alemão) da Universidade Livre de Berlim (Frëie), Costa chegou à cidade poucos meses antes da queda do muro que dividia as duas Alemanhas, no fim de 1989. “Você vê a nossa educação?”, continua ele, “as cotas promoveram uma verdadeira revolução na universidade brasileira, mas investimentos nesse campo só têm efeito real sobre a desigualdade se a escola pública for tão boa quanto a privada”.
É uma tese que Costa já havia explorado em Repensar las desigualdades, livro que publicou pela editora espanhola Siglo XXI, em 2020, ao lado da socióloga Renata Motta — também professora da LAI, em Berlim — e de Elizabeth Jelin, um dos grandes nomes da sociologia argentina e que faz parte do quadro de pesquisadores do Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social (Ides), em Buenos Aires. Na ocasião da conversa com a PB, em meados de 2023, ele se dedicava à produção de outro livro sobre desigualdades — mas, dessa vez jogando luz sobre suas estruturas. “As disparidades educacionais sustentam as diferenças sociais no Brasil hoje”, disse.
Dias depois, em outra conversa informal com a reportagem, ele tentava aprofundar o diagnóstico, considerando que quem termina o ciclo escolar no sistema público tende a ocupar posições piores no mercado de trabalho — quando não engrossando as fileiras de mão de obra precária dentro das plataformas —, enquanto colégios privados formam profissionais qualificados já prontos para assumir cargos de liderança. “E como resolver isso? Um passo fundamental é oferecer serviços públicos à população (educação, por exemplo) de mais qualidade”, explica.
Não é um diagnóstico isolado. Economistas como Ana Carla Abrão, que, atualmente, dirige a área de Novos Negócios da B3, ou Fabio Giambiagi, pesquisador no Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getulio Vargas (FGV), além de nomes como o do advogado Marcelo Guaranys — que chegou a ser secretário-executivo do Ministério da Economia — e de Paulo Hartung, ex-governador do Espírito Santo, atualmente presidente da Indústria Brasileira de Árvores (Ibá), têm percepções bastante parecidas: fora os aspectos estruturais da desigualdade brasileira, o nível dos serviços oferecidos pela estrutura estatal, por ser muito baixo, perpetua essa condição.
Há alguns meses, em um movimento puxado pela Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), esses especialistas começaram a transformar esse diagnóstico em uma agenda política — que deve ganhar corpo em breve. “A contradição do nosso Estado é que ele é grande, mas ineficiente”, aponta o economista e assessor da Entidade, André Sacconato. “Essa constatação [sobre o Estado] exige, como solução, uma ampla reforma que consiga reestruturá-lo. E como a eficiência é um dos problemas mais graves, o primeiro tópico que deve ser atacado é justamente a qualidade dos serviços públicos. Se conseguirmos melhorá-los, será possível inserir as classes baixas em posições mais próximas às dos estratos mais ricos”, explica Sacconato, que leciona na Fundação Instituto de Administração (FIA) e na Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe).
O economista lembra como, por muito tempo, essa discussão se alicerçou na constatação (equivocada) de que quanto maiores salários e benefícios nas carreiras públicas, mais os servidores se empenhariam nas funções e, então, se elevaria o nível geral dos serviços. Foi assim que essa distância só cresceu no Brasil da Nova República. Em 2022, segundo cálculos feitos a partir de dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), a diferença entre os rendimentos médios de funcionários federais para a massa salarial média do mercado privado era de abissais 255%. Mesmo entre servidores, havia margens muito distintas, que chegavam a 131%, no caso de funcionários estaduais, e a 32% para colegas de nível municipal.
Em outras palavras, os salários mais elevados ficam concentrados em um grupo relativamente pequeno da burocracia estatal (cerca de 938 mil servidores), ao passo que entre os cerca de 5,9 milhões de funcionários espalhados pelas cidades do País, o salário médio fica perto de R$ 4 mil. “Esse é um argumento fracassado. O certo é o seguinte: é preciso reformar a máquina do Estado para elevar o nível dos serviços públicos e, a partir disso, dar condições para os mais pobres competirem no mercado de trabalho. É isso que queremos debater agora”, complementa Sacconato.
O objeto dessa análise (“os mais pobres”) concorda. Um estudo feito no ano passado pela organização social Agenda Pública apontou um panorama nacional marcado por insatisfações das populações com os serviços públicos fornecidos. Em São Paulo, por exemplo, somente 15% das pessoas se dizem satisfeitas com o ensino municipal — isso significa que oito em cada dez (85%) paulistanos estão infelizes, de alguma forma, com o sistema. No Rio, essa taxa é de 12%. A melhor pontuação é Curitiba, com 26% de aprovação.
Em uma escala contrária, medindo o descontentamento do povo, a Agenda Pública ouviu de 61% dos paulistanos que a disponibilidade de médicos na rede ambulatorial da cidade é ruim, taxa que foi de 54% em Fortaleza e de 60% em Manaus, por exemplo. “Nós gastamos muito mal. Isso é um fato”, corrobora Giambiagi, que trabalhou por quatro décadas no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), fez parte do staff brasileiro lotado no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em Washington, nos Estados Unidos, e, atualmente, é pesquisador no Ibre, da FGV. “Isso fica ainda mais grave quando observamos o aumento constante da arrecadação, sem que isso tenha um retorno efetivo”, completa.
Dados oficiais mostram que o governo arrecadou R$ 1,89 trilhão em 2013, ou quase o total dos R$ 2,17 trilhões previstos. Dez anos depois, em 2023, esse valor subiu para R$ 4,3 trilhões, dentro de um orçamento que previa um montante de mais de R$ 5 trilhões. Nesse ínterim, gastos com pessoal chegaram a 13,5% do Produto Interno Bruto (PIB), segundo números da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). “Mas é importante que não haja qualquer confusão de objetivos. O Brasil precisa de uma Reforma Administrativa não para promover ajuste fiscal, mas para atacar um problema que é da ordem da desigualdade”, prossegue Giambiagi. “Isso não significa que, lá na frente, não possa impactar as contas, mas não é o foco”, ressalta.
Esse discurso é um ataque indireto a quem procura “ressecar” o peso da agenda reforçando um caráter orçamentário. Em julho, o secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, disse ao portal Metrópoles que uma possível reforma teria “pouco impacto fiscal”, embora tenha emendado, depois, que o debate deveria rodear uma “reorganização do setor público”. Antes disso, no fim do ano passado, o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Dario Durigan, havia reforçado um diagnóstico parecido. Para uma plateia de empresários do setor financeiro, ele afirmou que a reforma é importante para melhorar a eficiência dos serviços. “Uma redução de custos viria em segundo lugar”, disse. Para Sacconato, entra no hall de serviços públicos não só aqueles que compõem as principais demandas, como educação e saúde. “É preciso reestruturar a forma como o Estado lida com empreendedores”, recorda.
Na pesquisa da Agenda Pública, 57% dos paulistanos se diziam insatisfeitos com o volume de impostos cobrados pela prefeitura, enquanto 50% deles ainda lamentavam a falta de apoio da administração municipal ao empreendedorismo. Em Belo Horizonte, 52% das pessoas também se disseram infelizes com a carga de tributos sobre empresas — número que chegou a 61% em Recife e 65% em Belém. “É um desafio imenso, daqueles que, no Brasil, passamos anos tentando superar. E é isso que estamos fazendo”, finaliza Sacconato.