Artigo

Precisamos de uma boa lei para combater os supersalários

Vera Monteiro
é integrante do Movimento Pessoas à Frente, professora de Direito Administrativo na Fundação Getulio Vargas de São Paulo (FGV-SP), Lemann Foundation Visiting Fellow na Blavatnik School of Government (Oxford, UK). Doutora pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Bruno Carazza
é professor associado na Fundação Dom Cabral (FDC) e autor dos livros "O país dos privilégios" e "Dinheiro, eleições e poder".
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Vera Monteiro
é integrante do Movimento Pessoas à Frente, professora de Direito Administrativo na Fundação Getulio Vargas de São Paulo (FGV-SP), Lemann Foundation Visiting Fellow na Blavatnik School of Government (Oxford, UK). Doutora pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Bruno Carazza
é professor associado na Fundação Dom Cabral (FDC) e autor dos livros "O país dos privilégios" e "Dinheiro, eleições e poder".

Os episódios de salários exorbitantes recebidos por fatias muito específicas do funcionalismo público brasileiro têm recebido destaque diário na mídia ultimamente. E não se trata apenas de manchetes retratando casos isolados de abusos ou ilegalidades. Em 2024, só no Judiciário, quase R$ 7 bilhões teriam sido gastos com pagamentos acima do teto estabelecido na Constituição. 

Em decisão recente, Flávio Dino, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), criticou o que chamou de “vale-tudo” para justificar pagamentos acima do teto e negou o pagamento retroativo de auxílio-alimentação a um magistrado mineiro, que pleiteava isonomia com o benefício autoconcedido pelo Ministério Público (MP). Esse tem sido o caminho trilhado pelas corporações do sistema judicial nos últimos anos: os tribunais e os conselhos nacionais do Ministério Público (CNMP) e de Justiça (CNJ) validam vantagens por meio de indenizações que fazem com que os salários fiquem acima do teto. E quem não foi beneficiado vai ao Judiciário pleitear equiparação. Dino foi enfático: não cabe ao Judiciário, apenas com fundamento no princípio da isonomia, aumentar vencimentos de servidores. 

Nas palavras do ministro, “hoje é rigorosamente impossível alguém identificar qual o teto efetivamente observado, quais parcelas são pagas e se realmente são indenizatórias, tal é a multiplicidade de pagamento com as mais variadas razões enunciadas (isonomia, ‘acervo’, compensações, ‘venda’ de benefícios etc.)”. Buscando colocar um freio de arrumação nos pagamentos bilionários, em 20 de dezembro, o Congresso alterou a Constituição para dizer que só uma lei teria força para definir as indenizações que podem ficar fora do teto. Sob essa lógica, resoluções do CNJ, do CNMP e dos demais órgãos autônomos não poderiam mais criar indenizações e burlar o teto por vontade própria. É preciso, portanto, elaborar uma boa lei para eliminar as distorções atuais e coibir abusos.

O governo federal declarou que o tema é prioritário na agenda legislativa do Ministério da Fazenda para 2025, apresentada ao presidente da Câmara dos Deputados. No Senado, o relator do PL 2.721/2021, que trata do assunto, declarou que pretende se debruçar sobre o texto recebido da Câmara, reunindo outros projetos sobre a questão, logo após o carnaval. A sociedade está alerta para evitar que esse “vale-tudo” aconteça no Congresso e a proposta seja capturada pelo lobby das associações representativas das corporações do funcionalismo público. Estudo lançado em dezembro de 2024 pelo Movimento Pessoas à Frente (MPaF), elaborado por Bruno Carazza, revelou que vários itens do PL 2.721/2021 legitimam injustificadamente os supersalários, pois estes têm caráter remuneratório e não indenizatório. Para se ter uma ideia do tamanho do impacto, caso o PL fosse aprovado, teria sido pago um montante de cerca de R$ 11,1 bilhões em indenizações, isentos de Imposto de Renda (IR), em 2023.

Em outro estudo, elaborado pelos advogados João Paulo Bachur, Maria Fernanda Teixeira e Elisa Amorim Boaventura, dá para se ter uma visibilidade do varejo que o PL 2.721/2021 se transformou. Dissecando as parcelas listadas no texto, o trabalho demonstra que não faz o menor sentido considerar que pagamentos como auxílio-funeral; ressarcimento de mensalidade de plano de saúde; adicional de remuneração para atividades penosas, insalubres e perigosas; gratificação por exercício cumulativo de ofício; entre outras, sejam consideradas indenizações, visto que o seu objetivo é apenas e tão somente aumentar a remuneração dos servidores que o recebem. Ao deixar essas parcelas fora do teto, o PL desmoraliza o limite remuneratório previsto na Constituição.

É evidente que esse PL foi capturado pelos interesses corporativistas na Câmara. Logo, nova solução legislativa precisa ser negociada para eliminar essas distorções. A lei que regulamentará os supersalários deve listar apenas as parcelas que têm efetivo caráter indenizatório, deixando de fora aquelas assim classificadas com o fim ilícito de burlar o teto e não pagar IR. O alerta é para que a última mudança na Constituição (EC 135/2024) não caia na mesma cilada da Reforma Administrativa realizada na década de 1990 (EC 19/1998). Só para lembrar, o fim dos supersalários era o que se queria quando se alterou o art. 37, XI, no fim dos anos 1990. Passados mais de 25 anos, o teto é, sobretudo para magistrados e membros do Ministério Público, uma ficção. Para serem efetivos, aprimoramentos relevantes na administração pública brasileira dependem de boas leis.

Chegar a uma solução legislativa legítima para frear os supersalários com base nesses parâmetros significa resgatar a autoridade do teto constitucional. Não há, hoje, no Congresso Nacional, um projeto condizente com o tamanho e a complexidade do tema, capaz de desenhar critérios claros para apartar o que de fato é indenizatório — e, portanto, legítimo de ser acrescido aos salários — daquilo que se revela penduricalho e abusivo. Por isso, é fundamental reiniciar esse debate em bases republicanas, livre dos interesses das poderosas corporações da elite do funcionalismo público.

Janelas de oportunidade têm características muito singulares de abertura e costumam durar pouco. Encarar os privilégios e impedir que estes se legitimem significa um passo importante em direção ao fortalecimento do Estado no seu compromisso de combater as desigualdades e valorizar o serviço público nacional.


Saiba mais sobre o tema nas notas técnicas Além do teto: análises e contribuições para o fim dos supersalários e Supersalários e o teto constitucional: natureza das verbas indenizatórias e remuneratórias e o PL nº 2721/2021.

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