A felicidade de cada um

12 de julho de 2024

Q

Quando o cineasta alemão Wim Wenders dirigiu e roteirizou, em parceria com o japonês Takayuki Takuma, Dias perfeitos — indicado ao Oscar 2024 de Melhor Filme Internacional —, ele provavelmente não imaginava que o filme se tornaria mais uma referência para filósofos, educadores e psicanalistas que se debruçam em estudar o que é a felicidade. A película até está inspirando um movimento que ganha força nas redes, o slow living, ao mostrar como a rotina simples e atenta do protagonista pode ser bela. No filme, o personagem de Koji Yakusho vive de forma modesta e tranquila ao equilibrar o trabalho de zelador de banheiros públicos de Tóquio com os pequenos prazeres do dia a dia, como cuidar das plantas, ler, ouvir clássicos do rock dos anos 1960 e fotografar. 

Enquanto a ciência avança e a tecnologia invade cada minuto do cotidiano contemporâneo, a busca pela felicidade vai ganhando ares cada vez mais utópicos. O “ser feliz” é assunto desde as rodas filosóficas dos gregos da Antiguidade, mas o questionamento ganhou força após a Segunda Guerra Mundial, quando livros e filmes passaram a abordar o assunto. Hoje, num mundo digital onde a grama do vizinho sempre parece mais verde, a felicidade é tema até de cursos livres e de graduação, e congressos celebrados pelo mundo. É como se pudesse existir um menu de ferramentas para alcançar determinados marcos que, ao fim de um caminho de conquistas, o prêmio fosse essa tal felicidade. 

O conceito, no entanto, varia, principalmente por ser uma percepção individual e depender de alguns fatores para uma definição ampla. O escritor Eduardo Giannetti, que também é economista, cientista social e filósofo, lembra que há diferenças entre estar e ser feliz. O primeiro é circunstancial e implica um estado de ânimo momentâneo, por exemplo, ganhar na loteria, casamento dos filhos, aumento de salário e compra de uma casa nova. “Uma vida pode ter momentos de extrema exuberância e picos de euforia, mas isso não representa uma trajetória na qual a pessoa se reconheça como feliz”, explica Gianetti. 

Já o ser feliz não é circunstancial. Aqui, o indivíduo faz uma avaliação da sua trajetória e se esta é (ou tem sido) satisfatória nas diversas dimensões: profissional, afetiva, espiritual e das saúdes física e mental. “E mesmo sem picos de euforia exacerbados ou momentos de grande plenitude momentânea, a pessoa pode se reconhecer como feliz”, ressalta. O personagem do filme citado no início desta matéria é um ótimo exemplo, lembra Giannetti. “A vida dele não tem momentos exuberantes, eufóricos, mas ele se reconhece nela e sente grande satisfação.”   

Christian Dunker, professor no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP) e autor de livros da psicanálise e psicopatologias, frisa que o personagem pode limpar banheiros e ter uma vida social limitada, mas as tarefas que ele exerce de forma rotineira, como cuidar e agregar vida às plantas, o tornam feliz. “É um filme que traz uma grande lição.” Segundo o psicanalista, uma trajetória feliz é marcada por momentos positivos, encontros amorosos e profissionais e pequenos prazeres que permitam que essa vida seja contada a partir das transformações e acontecimentos. “Mas, além desse conceito, é preciso pensar no sentimento de felicidade como uma linha de base: um dia faz sol e no outro chove. Temos contrariedades e realizações, porém, no conjunto, nos situamos na forma como essas contrariedades são conciliadas no cotidiano, com quem dividimos um destino comum, a sensação de que a vida forma uma espécie de totalidade”, explica.

Triste Brasil

O estereótipo da alegria brasileira não encontra respaldo nos dados. No ranking Worl Happiness Report, o País ocupou uma modesta 44ª colocação em 2023, apesar do avanço em relação ao 49º lugar de 2022. O estudo é conduzido pelo Instituto Gallup, que entrevista 100 mil pessoas do mundo inteiro com apoios do Centro de Pesquisas e Bem-Estar de Oxford, da Organização das Nações Unidas (ONU) e do Conselho Editorial do WHR.

O relatório avalia a demanda das populações em diversas faixas etárias, baseando as perguntas em renda, saúde, liberdade, generosidade e corrupção. A Finlândia lidera a lista como o país mais feliz do mundo pela sexta vez consecutiva — embora essa posição nem sempre reflita a percepção de felicidade dos finlandeses, mas a boa qualidade de vida nórdica. “Vivemos um paradoxo, temos um povo gentil, guerreiro e hospitaleiro que, do ponto de vista das emoções positivas, parece feliz. Contudo, ao olharmos para a outra face da felicidade, a autorrealização, o alcance do próprio potencial, enxergamos inúmeras barreiras socioeconômicas, má distribuição de renda e pouco alcance educacional e de oportunidades”, ressalta Wagner de Lara Machado, psicólogo e professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), que coordena o grupo de pesquisa Avaliação em Bem-Estar e Saúde Mental (Abes) da universidade. “Fatores macrossociais e econômicos combinados, infelizmente, contribuem para afetar características como alegria e resiliência, influenciando na felicidade como autorrealização.”

No fim das contas, é difícil ser feliz — na concepção mais empírica do termo — num mundo injusto, desigual e bélico, com epidemias, tragédias climáticas e altos índices de diagnósticos de ansiedade e depressão. Com exceção das guerras, o Brasil se coloca em altas posições nos demais quesitos. Entretanto, o professor Dunker não vincula o ser feliz ou infeliz à pobreza, à miséria ou ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). “Existem países equivalentes em graus de miséria e de falta de recursos em que a percepção de felicidade é maior do que a de nações mais ricas.” De acordo com o psicanalista, o conceito desse sentimento coletivo tem a ver com a maneira como se interpreta a diversidade, a disparidade e as contradições sociais. “Você pode estar como no filme Dias perfeitos, limpando banheiros públicos, mas o seu apego ao cotidiano, ao tempo que se dedica às plantas, às amizades e aos encontros formam uma totalidade que o colocam num lugar determinado de contentamento.” 

Por sua vez, Giannetti observa que o nível de aspiração do que se chama felicidade em diferentes países também é muito diferente. E questiona: como comparar o conceito de ser feliz entre um italiano e um finlandês? “Os nórdicos, que estão nos primeiros lugares no ranking da ONU, têm uma visão muito mais resignada da vida do que os latinos, cujo nível de aspiração e de ambição é bem superior.”   

O economista, autor do livro Felicidade (Companhia das Letras, 2002), um ensaio em forma de diálogo filosófico, acrescenta que “a história do Brasil é ciclotímica, com momentos de grande exuberância, alta confiança, superação do complexo de vira-latas, com fases de depressão, frustração e falta de perspectivas”. Essa oscilação do ânimo coletivo é característica de uma sociedade que vive mais as emoções, como o Brasil. “Aos olhos de alguém muito racional e lógico, é inexplicável que um povo que tenha tudo para viver no amargor e na depressão consiga, como num passe de mágica, abstrair tudo, esquecer dos problemas e festejar o dom da vida e as relações humanas durante o carnaval”, observa o escritor. “Com toda a precariedade da nossa vida material, o povo não se entrega.”

Enquanto isso, no Japão, uma nação rica e desenvolvida, existe o Ministério da Solidão, que se propõe a enfrentar dois grandes problemas de saúde mental: a depressão e as altas taxas de suicídio — especialmente entre jovens, os que mais sofrem com a cultura rígida do país, com um alto índice de exigência de sucesso (arraigado culturalmente), da escola à vida profissional. 

Felicidade se aprende na escola? 

Diante da busca existencial da felicidade, proliferam cursos sobre o tema, inclusive em instituições de renome, como USP, PUC e Universidade Federal da Paraíba (UFPB). De um lado, o aspecto acadêmico do tema, com investigações, inclusive, nos campos da filosofia e da psicologia. De outro, a ambição de mostrar ao público em geral como chegar ao pote de ouro no fim do arco-íris. “O que fazemos é informar as pessoas a respeito daquilo que cientificamente favorece essa experiência, porque não existe receita de bolo para ensinar felicidade”, esclarece Machado, do Abes. Ensinar é informar acerca das trilhas para que cada pessoa encontre o próprio caminho. Para alguns, pesa mais a sensação de emoções positivas do que experiências prazerosas e satisfação de desejos. Outros centralizam a felicidade no trabalho, na carreira, nas atividades que desenvolvam o potencial, complementa o professor.

Dunker, que também coordena o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP, afirma que, num sentido mais simples, é possível ensinar a busca e a realização, pois essa era a pauta filosófica dos epicuristas e estoicos, segundo os quais a felicidade é alcançada por meio de uma vida bem vivida. “Ninguém será feliz como um aluno de felicidade”, destaca o psicanalista, mas podem ser lecionadas maneiras de amar, formas de afeto, protótipos de como construímos uma vida bem-sucedida nos próprios termos. “Num sentido mais profundo, em que a felicidade seja caminho absolutamente particular, ela não se ensina.” 

Contribuições de psicólogos, filósofos e economistas são importantes para estruturar melhor nossas crenças, bem como para que cada um possa examinar criticamente a própria vida e buscar a felicidade à sua maneira, observa Giannetti. “Acho que podemos ajudar instrumentalizando a análise crítica das pessoas para que reflitam sobre algumas coisas. Por exemplo, por que desejar desesperadamente comprar algo? Será que a ação vai entregar o que se imagina em termos de melhoria da vida e do alcance de uma certa harmonia e plenitude? Será que a pessoa quer mudar as coisas ou prefere se adaptar e ter uma vida mais equilibrada?”, conclui. 

Barbara Oliveira DÉBORA FARIA
Barbara Oliveira DÉBORA FARIA