Muitos foram os interesses culturais do segundo imperador do Brasil, e tal fato é largamente conhecido pelos seus biógrafos e por aqueles que, nos dias de hoje, atualizam os estudos ao seu respeito. Neste ano em que celebramos o bicentenário do seu nascimento, várias publicações buscam apresentar as diferentes faces de Dom Pedro II: tradutor, poeta, epistológrafo, colecionador, monarca etc. Pessoalmente, minha contribuição é a publicação do livro Dom Pedro II e a cultura hebraica, pela Editora Francisco Alves, sobre o qual, aqui, faço algumas reflexões e compartilho informações que julgo interessantes para os leitores.
Fruto de uma longa e complexa pesquisa iniciada em 2022, quando fui convidado para ser professor visitante na Universidade Hebraica de Jerusalém, em Israel, onde organizei conferências e lecionei um curso sobre as relações de Dom Pedro II com o Oriente Médio. Durante os dias na Cidade Santa, pude investigar nos diversos arquivos locais e, para minha imensa surpresa, encontrei inúmeros documentos alusivos à visita que o monarca brasileiro fizera à região, em 1876.
Na verdade, Dom Pedro II chegou a Jerusalém após uma rápida passagem por Beirute, capital do Líbano, e foi recebido com todas as honras dignas de um chefe de Estado. No caso dele, era o primeiro estadista latino-americano a visitar aquela região, um fato em si inusitado e que despertou curiosidades e debates sobre as suas motivações e interesses.
Sabe-se que sua comitiva tinha aproximadamente 200 pessoas, um número que desperta a nossa curiosidade e nos obriga a pensar na logística de tantas pessoas se deslocando pelos desertos e pelas cidades que compõem o que, genericamente, chamamos de Terra Santa. Ele foi acompanhado pela imperatriz Dona Teresa Cristina, suas damas de companhia e alguns membros da nobreza brasileira, como o Visconde do Bom Retiro, que foi o responsável pela complexa organização — inclusive diplomática — dessa jornada.
Passaram por várias cidades importantes e citadas nas narrativas bíblicas: Jericó, Cafarnaum, Belém, Nazaré, Betânia, Galileia e Jerusalém — isso sem dizer de outros lugares igualmente significativos, tais como o Lago de Genesaré, a Montanha das Tentações, o Moab e a região da antiga Samaria. Visitou igrejas cristãs — latinas e ortodoxas —, mesquitas e sinagogas, num imenso interesse por tudo o que dissesse respeito à história e à arqueologia locais, com especial interesse pelos textos bíblicos do Antigo Testamento e do Novo Testamento, da Torá hebraica e também do Alcorão islâmico. Ou seja, Dom Pedro II não vivenciou sua viagem apenas na perspectiva de turismo, algo tão comum hoje em dia, mas no sentido de “vilegiatura” — uma verdadeira viagem de conhecimento e de produção de inteligência. Prova disso foi o seu minucioso e detalhado Diário de viagem à Palestina, no qual ele registrou os lugares visitados e as pessoas que conheceu, além das sensações e das emoções sentidas e despertadas.
Pois bem, o meu livro busca resgatar, com um olhar investigativo contemporâneo, todo esse périplo imperial e o especial apreço do segundo imperador do Brasil pela cultura hebraica e suas milenares tradições linguística e literária.
De volta ao Brasil, após ter acessado inúmeros documentos nos arquivos de Jerusalém e Tel Aviv, também em Israel, fui conferir no arquivo do imperador, salvaguardado no Museu Imperial, em Petrópolis, no Estado do Rio de Janeiro, o que havia de hebraico e relacionado à viagem de 1876. Para a minha grata surpresa, encontrei uma imensa quantidade de cartas, diários, cadernetas, manuscritos, desenhos, fotografias e outras tipologias documentais que relacionavam — direta ou indiretamente — Dom Pedro II e a milenar cultura hebraica. Foi quando descobri que o imperador teve quatro professores do idioma, isso sem dizer das várias traduções que fizera de textos do Antigo Testamento, com especial destaque para alguns salmos, determinados capítulos do Livro de Gênesis, o Livro de Rute e fragmentos proféticos.
Avançando na minha investigação, descobri que o imperador produziu um álbum de imagens (fotografias) acerca da sua viagem de 1876. Ao passar por Beirute, contratou os serviços de Félix Bonfils, importante fotógrafo francês radicado na capital do Líbano, onde montou um considerável estúdio fotográfico, especializado em imagens do Oriente Médio. Tal álbum encomendado pelo monarca se encontra, atualmente, na nossa Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro.
A bem da verdade, não sou o primeiro a lidar com tal temática, pois sempre digo que figuras como Dom Pedro II — o personagem mais pesquisado da nossa história — não pertencem a um único pesquisador. Isso sem contar que um determinado objeto pode ser investigado e abordado por diferentes olhares e objetivos, algo muito sadio na ciência, o que a revitaliza, inclusive. Digo isso pois me deparei com importantes pesquisas e publicações já realizadas por figuras como o historiador argentino Reuven Faingold e a escritora brasileira Sônia Sales, que me antecederam nesse assunto e deram as suas ótimas contribuições bibliográficas.
Conhecedor de todos esses detalhes e das diferentes fontes documentais, processei tais dados e montei uma espécie de roteiro contendo os passos e o conteúdo da minha investigação, já pensando na publicação de um livro em 2025, no claro intuito de aproveitar e contribuir com as celebrações do bicentenário de nascimento do imperador.
Interessante notar que 90% dessa documentação original estava escrita em francês, numa clara demonstração da força cultura do idioma, que sempre foi a língua oficial das comunicações diplomáticas. Tal fato trouxe uma certa dificuldade inicial, resolvida com a contratação de um tradutor especializado em francês do século 19. Todo esse esforço foi operado no sentido claro de se obter traduções fidedignas que respeitassem o estilo (nem sempre simples e fácil) próprio da escrita de Dom Pedro II.
Com o avanço da investigação, deparei-me com outra interessante surpresa: o livro Poesias hebraico-provençais do ritual israelita Comtadin, organizado e publicado pelo monarca, em 1891, três meses antes do seu falecimento, ocorrido em Paris, na França, durante seu exílio. Na verdade, trata-se do único livro publicado por ele durante a vida, o qual traz uma seleção de poemas da literatura hebraica devidamente traduzidos pelo próprio Dom Pedro II, ressaltando-se um interessante prefácio crítico, em que explica, com boa metodologia, o processo de escolha e tradução de tais poemas.
E por falar em surpresas, uma figura única e fundamental para essa história foi o frade franciscano Liévin de Hamme, que o imperador conheceu em Nazaré, em Israel. Na verdade, o frei trabalhou como uma espécie de guia local, levando e acompanhando o imperador em todos os seus passeios e visitas pelos diferentes locais da Terra Santa. Em virtude do seu talento e imenso conhecimento da história — e, principalmente, da arqueologia bíblica —, logo despertou o apreço e amizade do nosso imperador.
Frei Hamme foi o autor do Guia indicador dos santuários e lugares históricos da Terra Santa, um importante e fundamental guia de viagem escrito e pensado para os peregrinos em visita àqueles lugares santos. Dom Pedro II não foi apenas um entusiasta desse livro, mas adquiriu 50 exemplares e, de Jerusalém, remeteu a familiares, amigos e colaboradores mais próximos. As várias cartas de Hamme ao imperador estão traduzidas e publicadas no meu livro, servindo como uma espécie de diário político-religioso da Terra Santa, tamanha a quantidade de notícias e informações remetidas para o monarca brasileiro sobre o governo e os grupos religiosos locais, algo que verdadeiramente o fascinava.
Já estávamos avançando de 2023 para 2024 e precisei definir o conteúdo final do livro, algo realmente difícil, dada a complexidade de toda essa história, de seus detalhes e curiosidades e das descobertas que a cada visita a um arquivo e a cada documento lido e traduzido. O livro ficou assim estruturado:
– um ensaio introdutório;
– os diários de viagem — do imperador, da imperatriz e do Visconde do Bom Retiro;
– o álbum de fotografias da viagem à Terra Santa;
– a correspondência trocada entre Dom Pedro II e seus familiares e amigos mais próximos;
– o livro Poesias hebraico-provençais do ritual israelita Comtadin com as respectivas traduções;
– documentos gerais — poemas, traduções, textos bíblicos etc.;
– mais de 200 imagens espalhadas ao longo do livro, no sentido de ilustrar e embelezar a publicação.
Num total de 560 páginas, em edição de luxo produzida pela Editora Francisco Alves, o livro já surge como uma obra de referência para os estudos interdisciplinares entre biografia, história, literatura, diplomacia, hebraísmo, linguística histórica, tradutologia, orientalismo, exegese bíblica, arqueologia e geografia histórica aplicada ao Oriente Médio. Não exagero ao destacar todas essas diferentes áreas do saber, e a leitura do livro confirmará a minha afirmação.
Sabemos que o processo de investigação é difícil e dinâmico, sempre suscetível ao tempo e suas ações e particularidades. Digo isso porque, em caráter de curiosidade, revelo um fato complicado e até curioso que me ocorreu no ano passado, quando estava na fase de conclusão da pesquisa e preparação dos arquivos finais da obra.
Organizei e planejei meu retorno a Israel, no sentido de conferir e até obter mais documentos que comporiam a minha obra. Pensei minuciosamente nos detalhes da viagem, nos lugares, na instituições que visitaria — principalmente arquivos locais — e nas muitas imagens que gostaria de produzir, especialmente fotografando locais e documentos. Chegou o dia do embarque para Tel Aviv, saindo do Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio. Passei pelo check-in da companhia aérea, fiz todo o trâmite imigratório da Polícia Federal, dirigi-me à sala de embarque e, finalmente, entrei na aeronave que me levaria à cidade, com uma conexão no Aeroporto de Roma, na Itália.
Já acomodado, cintos afivelados e uma imensa demora na decolagem, qual não foi a minha tristeza ao ouvir — pela voz do piloto — o meu nome e de mais 27 passageiros cujo destino final era Tel Aviv. Motivo: em razão do acirramento bélico entre Israel e o grupo terrorista Hamas, o espaço aéreo israelense fora fechado para pousos e decolagens, com um sinal de alerta emitido para todas as companhias aéreas do mundo (inclusive a minha) e para o meu voo. Fomos todos obrigados a desembarcar da aeronave, com uma imensa frustração e a viagem foi cancelada.
Felizmente, contei com a imensa boa vontade dos funcionários da nossa embaixada em Tel Aviv, que, gentilmente, ofereceram-se para identificar e digitalizar vários documentos por mim indicados, os quais eu mesmo resgataria, não fosse todo esse tumulto e esse problema provocado pelas questões geopolíticas do Oriente Médio, sempre tensas e em ponto de constante explosão. Registro aqui o meu imenso agradecimento àquela equipe diplomática que muito bem nos representa.
Enfim, celebrar a vida e o legado do imperador Dom Pedro II é um imperativo, especialmente neste ano de 2025, quando comemoramos o bicentenário do seu nascimento. Um homem do seu tempo, cheio de avanços e retrocessos, portanto sensível às vicissitudes da própria condição humana. É assim que prefiro identificar e considerar a sua personalidade, sem canonizações da sua pessoa, tão comum hoje em dia.
Entretanto, sem medo da hipérbole, considero o segundo imperador do Brasil uma das figuras mais cativantes da nossa história, um homem à frente do seu tempo, aberto às inovações científicas e sempre atento aos talentos que floresciam na literatura brasileira e nas diversas literaturas estrangeiras. Um grande tradutor, polímata, estudioso que dominava com maestria mais de 15 idiomas — inclusive os mais antigos, como hebraico, árabe, sânscrito, sumério, latim e grego clássico.
Possuiu uma das maiores bibliotecas particulares do século 19, que abrigava mais de 30 mil livros, atributo surpreendente para a época. Um homem que se interessava por tudo e que tinha apreços cultural e investigativo pelas mais diferentes áreas do saber. Além disso, sempre colocava o Brasil no primeiro plano dos seus interesses, não apenas de governante, mas também de entusiasta dos nossos talentos e das nossas riquezas culturais.
Neste meu livro, que marca o seu apreço pela cultura hebraica, o leitor não verá apenas um imperador curioso, mas também um sujeito ávido pelo conhecimento, pelas tradições e pela identidade de outros povos e dos seus sistemas particulares de tradição e identidade. Um verdadeiro estadista e um intelectual próprio do seu tempo, que muito orgulha a nossa história pátria.
*Leandro Garcia, professor na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), membro titular do Instituto Histórico de Petrópolis e presidente da Academia Petropolitana de Letras (APL). É autor de Dom Pedro II e a cultura hebraica (Editora Francisco Alves, 2025)