O fim do Estado Novo

24 de outubro de 2025

I

“‘Isso está mais parecido com uma ação de despejo que um golpe de Estado’, ironizou Getúlio Dornelles Vargas, ao ser comunicado pelos auxiliares, naquela manhã de 29 de outubro de 1945, que os generais do Exército haviam mandado cortar a luz, a água e o gás da residência oficial da Presidência da República, o Palácio Guanabara, no Rio de Janeiro, então capital federal.”

O relato do escritor Lira Neto, autor da mais alentada biografia de Vargas (editada e lançada em três volumes pela Companhia das Letras entre 2012 e 2014), ilustra a peculiaridade do primeiro golpe planejado em conjunto pelas três instituições militares — Exército, Marinha e Aeronáutica — para depor um governante no Brasil.

Desde a noite anterior, tropas ocupavam as principais artérias da cidade e os edifícios públicos, cercando o Palácio Guanabara para impor o fim do Estado Novo, regime paradoxalmente modernizador e autoritário, implantado em 1937 para introduzir o culto à personalidade do líder, aclamado em grandes concentrações e desfiles cívicos.

Único civil a chefiar uma ditadura no País, Vargas tinha com os militares uma relação dúbia. Na Revolução de 1930, apoiara-se no Movimento Tenentista, espalhando seus integrantes como interventores Brasil afora, durante o Governo Provisório (1930–1934). Como presidente constitucional (1934–1937), contou com a lealdade da oficialidade para derrotar a chamada Intentona Comunista, liderada por Luís Carlos Prestes. E manteve-se no poder ditatorialmente até 1945, sustentado pelos generais Góis Monteiro e Eurico Dutra, os mesmos que naquela manhã o defenestravam.

Enquanto embalava objetos pessoais, encaixotava livros e selecionava papéis particulares, queixava-se: “Entrei para o governo por uma revolução, saí por uma quartelada”.

Ditadura da incoerência

Esse desfecho, porém, fazia parte do edifício arquitetado pelo político gaúcho ao longo dos 15 anos em que comandou uma nação periférica, que deixava de ser exclusivamente agrária para se industrializar e urbanizar. Ao extinguir os partidos políticos, cercar o Congresso e mandar seus membros para casa, no dia 10 de novembro de 1937, Vargas abria as portas do governo para os militares — e as consequências, que se fizeram sentir ao longo da segunda metade do século 20, chegariam ao século 21.

Mais confiável aliado e principal instrumento de controle da ditadura do Estado Novo, o Exército manteve-se à sombra das insolúveis contradições getulistas do período. A criação dos direitos trabalhistas e de uma burocracia estatal que viabilizasse um projeto nacionalista de desenvolvimento ocorria em paralelo à tutela sobre os sindicatos e à manutenção da imprensa sob censura. Soldados da Força Expedicionária Brasileira (FEB) foram enviados para lutar na Segunda Guerra Mundial contra os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), enquanto por aqui vigorava “nosso pequenino fascismo tupinambá”, no dizer sarcástico do escritor Graciliano Ramos.

A derrota do nazifascismo pelas tropas aliadas, em 8 de maio de 1945, evidencia o anacronismo do Estado Novo, que começou a ser desmontado ainda em fevereiro daquele ano, pela convocação de eleições presidenciais para a Câmara dos Deputados e o Senado, a serem realizadas em 2 de dezembro. “Eleições livres e honestas na data marcada”, dizia a propaganda oficial do governo, enquanto Vargas, com sua proverbial esperteza, manobrava nos bastidores pelo próprio continuísmo.

Em abril, foi concedida anistia geral a todos os presos políticos e libertado o líder comunista Prestes, no cárcere desde 1936. Em seguida, foram fundados os partidos políticos que dominariam a cena nacional entre 1946 e 1964 — Partido Social Democrático (PSD), Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e União Democrática Nacional (UDN). Foi legalizado o Partido Comunista (PCB), que apoiava o continuísmo de Vargas sob o lema “Constituinte com Getúlio”.

Ao perceberem que o Estado Novo caminhava para um fim desfavorável ao presidente, trabalhadores saíram às ruas, temerosos de perder a proteção da legislação. O Queremismo — como ficou conhecido o movimento que proclamava “Nós queremos Getúlio” — empoderava a massa urbana empobrecida como participante da disputa política, o que jamais ocorrera na República desde o seu advento, em 1889.

Deposição sem resistência

Confiante de que voltaria ao poder nos braços do povo, Vargas não esboçou resistência ao ser deposto. Lançou uma proclamação à Nação — uma prévia do que seria mais tarde a carta-testamento — e recolheu-se à sua estância na cidade gaúcha de São Borja.

A bordo do avião da Força Aérea Brasileira (FAB) que o levou para o Rio Grande do Sul, no dia 1º de novembro, deu uma aula de estratégia política ao sobrinho, Vargas Netto, que o acompanhava. “Deves ter ouvido que a política se assemelha a um jogo de xadrez. Indiscutivelmente, em alguns pontos se assemelham. Por exemplo, eu sou uma pedra que foi movida da posição que ocupava. E eles pensam que vou permanecer onde me colocaram. É o grande erro deles. Não sabem que vamos começar um novo jogo — e com todas as pedras de volta ao tabuleiro”.

A partir daí, a política brasileira foi dominada pela disputa entre getulistas do PTB e do PSD, contra os antigetulistas viscerais da UDN, apoiados por militares que vira e mexe buscam tutelar o poder civil. Eleito por uma esmagadora maioria de votos em 1950, Vargas escolhe o suicídio em 1954, quando já estava virtualmente — e mais uma vez — deposto por generais rebeldes.

Em meio ao panorama internacional da Guerra Fria entre a União Soviética e os Estados Unidos, a UDN chegou ao governo, em 1961, com Jânio Quadros, cuja renúncia provocou nova crise — os militares tentaram evitar a posse do vice, João Goulart, e acabaram por derrubá-lo em março de 1964.Após uma ditadura de duas décadas, que até 1985 promoveu um rodízio de generais na Presidência da República, os militares voltaram a ocupar postos estratégicos durante o governo de Jair Bolsonaro (2019–2022) e alguns dos mais destacados foram condenados, juntamente com o ex-presidente, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em setembro deste ano, por tentativa de golpe de Estado, entre outros crimes. Uma punição sem paralelo na história do Brasil, que finalmente parece ter consolidado um Estado democrático que sabe se defender.

Herbert Carvalho
Annima de Mattos
Herbert Carvalho
Annima de Mattos