Imagine encher uma piscina olímpica com água tratada e, depois, apenas escoá-la, deixando escorrer pelo ralo todo o conteúdo, sem destiná-lo ao consumo. Agora, pense que, a cada 24 horas, é desperdiçado um volume suficiente para encher não apenas uma, mas 7,6 mil piscinas do tipo. Esse foi o tamanho da perda de água no Brasil em 2022 apenas na distribuição — ou seja, nessa conta, não entra a perda que ocorre em casas, empresas e indústrias. O número representa 37,78% de toda a água captada e tratada no País, e só esse volume perdido poderia abastecer as residências de 54 milhões de brasileiros. O número fica especialmente vergonhoso quando acontece num país onde 32 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada.
Os dados fazem parte do Estudo de Perdas de Água de 2024, do Instituto Trata Brasil (ITB), com informações oficiais referentes a 2022. “A perda é a diferença entre o volume de água tratada produzido e o volume efetivamente medido nos hidrômetros das pessoas. Essa perda se divide em dois grandes grupos: as físicas, ou seja, os vazamentos nas ruas, e as comerciais, das ligações irregulares, os conhecidos ‘gatos’”, explica Luana Pretto, CEO do ITB. Os vazamentos nas redes representam cerca de 60% das perdas e os “gatos”, 40%.
Luana conta que, historicamente, as companhias de saneamento básico vêm aumentando o volume de água produzida — coletada e tratada — para atender à crescente demanda, em vez de se tornarem mais eficientes, buscando formas de reduzir desvios. “Falar de redução de danos é falar de investimentos em gestão, na busca por vazamentos ocultos. Não é simples, mas traz resultados. Perda zero não existe, mas há países como Japão e Israel, com índices de perda de 8% e 10%”, compara a especialista.
Recurso escasso
A comparação com esses países pode parecer distante, até porque o Brasil é rico em recursos hídricos. Se considerado na sua totalidade, o País, que conta com menos de 3% da população mundial, concentra 12% da disponibilidade de água doce do planeta. Contudo, na prática, a ideia de abundância não passa de ilusão, porque essa água doce está localizada, sobretudo, na bacia Amazônica, próxima a regiões de baixa densidade populacional.
Sendo assim, ainda que a água fosse de fato abundante em todo o território nacional (como parece), o desperdício pelos canos implicaria mais custo com insumos químicos para tratamento e energia em bombeamento, além de aumentar desequilíbrios ambientais com a captação de mais água, construção de novos reservatórios e mais estações de tratamento. Não é sustentável para a economia (tampouco para o planeta) continuar a aumentar a produção sem fechar os buracos pelo caminho.
“Não tem como fugir da redução das perdas. Estamos vivendo uma época de eventos climáticos extremos, já sentindo os seus efeitos. Há rios que estão com 80% ou 90% da água que costumavam ter. Outros passaram a ter mais volatilidade. No interior do Mato Grosso, por exemplo, há poços secando”, afirma a CEO do ITB. No futuro, se nada for feito, Luana prevê situações de disputa por água, tanto entre municípios como entre setores da economia, o que pode elevar os preços de diversos produtos. Afinal, a água, além de essencial à vida das pessoas, é importantíssima para as indústrias e a produção agropecuária.
A média nacional de 37% de perdas de água mascara realidades bem díspares. Há localidades com desperdício na faixa dos 70%, outras, já abaixo da meta nacional, de 25%. Um caso exemplar é o da cidade de Campinas, no interior de São Paulo, onde as perdas batiam nos 38%, em 1994, e, hoje, estão em 19%. Graças a um sistema mais eficiente, o município passou a abastecer mais pessoas, retirando menos água das reservas. Há 30 anos, quando se instituiu a política de redução de perdas, a urbe distribuía, anualmente, 116 bilhões de metros cúbicos de água para 800 mil habitantes. Em 2022, com uma população 50% maior (1,2 milhão), o volume de água retirado foi de 108 bilhões de metros cúbicos.
Segundo Manuelito Pereira Magalhães Júnior, diretor-presidente da Sanasa, a companhia responsável pela gestão da água em Campinas, o combate às perdas é tema de grande relevância, embora seja pouco abordado. “Tem de haver vontade e continuidade política. Isso permite planejamento e formação de equipes. Sem continuidade, a cada hora é preciso um perfil diferente de profissional”, afirma.
Na prática, essa redução significa trocar encanamentos. Só nos últimos quatro anos, a cidade trocou 450 quilômetros de tubulações, cerca de 10% de toda a rede. É um processo trabalhoso, porém inevitável, defende Magalhães Júnior. “Esse é o carro-chefe do programa. Certos locais precisam crescer mais, há canos envelhecendo, a cidade vai mudando. Uma rede que estava preparada para um bairro onde não passava caminhão — mas, em determinado momento, viu a mobilidade mudar, com caminhões e ônibus — acaba sofrendo uma trepidação que afeta o encanamento. É preciso aprofundá-lo para evitar rompimentos”, exemplifica.
Atualmente, há muita tecnologia envolvida no processo. As trocas de tubulações dispensam que se abra toda a extensão da vida pública. Em vez disso, são feitos apenas alguns buracos para inserção de máquinas como o “tatuzão do metrô”. “Passamos a tubulação puxando de um lado e empurrando do outro. Quando há menos interferência na dinâmica da cidade, há mais apoio da população”, diz o diretor da Sanasa.
A companhia investe também na troca de hidrômetros das residências — com a instalação de equipamentos mais precisos — e na construção de reservatórios em locais altos, o que diminui a necessidade de pressão, especialmente à noite, quando o consumo cai. “Pequenos furos são inevitáveis, até no Japão tem. Mas quando reduzo a pressão à noite, menos água passa pelos canos, o que também reduz as perdas”, explica Magalhães Júnior.
Setor regulado
Uma boa regulação do setor, com obrigações determinadas em lei e prêmios pela eficiência, é outro ponto indispensável para o Brasil melhorar a gestão hídrica, defende Rubens Marques de Oliveira, diretor técnico da Associação dos Especialistas em Saneamento (Aesan). “Seja operado por empresa privada, seja operado por empresa pública, o saneamento básico é um monopólio. Seria inviável ter duas ou mais companhias atuando no mesmo município. Portanto, temos de criar regras atrativas do ponto de vista econômico, melhorar o serviço, mas sem onerar as tarifas”, destaca Oliveira.
O especialista acredita que o País esteja no caminho certo, com um bom marco regulatório desde 2020. No entanto, reconhece que a preocupação com as perdas ao longo das redes acaba ficando para segundo plano quando ainda há tanta gente para quem os canos simplesmente não chegam. “Temos uma parcela considerável da população sem acesso à água tratada ou rede esgoto. O que desejamos alcançar, antes de tudo, é a universalização do saneamento básico”, afirma. Atualmente, mais de 46% dos brasileiros não têm coleta de esgoto.
O diretor da Aesan ressalta, ainda, que, em muitos contextos, a água não é verdadeiramente perdida, mas usada pela população por meio de ligações clandestinas. “No Estado de São Paulo, o índice total é 34%, mas 18% são de perdas físicas, enquanto 16% representam água desviada para alimentar comunidades irregulares. Essa segunda forma se dá pela expansão desordenada das cidades. Por questões legais, as companhias não podem atender a essas populações”, explica. Embora a regularização seja complicada por envolver outros agentes públicos, seria vantajosa para todos, não só para as companhias, que receberiam mais pagamentos. “Levar saneamento oficial é levar dignidade”, defende Oliveira.
Do hidrômetro para dentro das residências e estabelecimentos comerciais, as perdas de água não são contabilizadas oficialmente, mas acontecem e provocam, igualmente, impactos ambientais e econômicos. Portanto, precisam ser combatidas. “Parece que só em época de crise, quando há racionamento ou rodízios, vemos uma preocupação maior. Quando os reservatórios têm água, as pessoas esquecem”, afirma Cristiane Cortez, assessora do Conselho de Sustentabilidade da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP). Todavia, cada um pode fazer um esforço para usar a água de forma racional e fazer alterações estruturais quando possível. “Se é preciso trocar uma torneira, a pessoa pode comprar uma que tenha um sistema de redução de vazão. Vale a pena comprar uma desse tipo, nem que seja um pouquinho mais cara, porque, ao longo do tempo, o item se paga. Há medidas muito simples”, defende Cristiane.