Levantamento da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) aponta que, em países desenvolvidos, são registradas as maiores taxas de alergia alimentar. Estilo de vida urbano, com alto consumo de alimentos ultraprocessados, é a principal causa.
Urbanização, poluição, alimentos ultraprocessados e excesso de antibióticos: aí estão as principais causas para o exponencial crescimento das alergias, apontam especialistas. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização Mundial de Alergia (WAO) indicam que cerca de 40% da população global vive com algum tipo de alergia. No Brasil, segundo a Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai), em torno de 4% das pessoas têm alergias alimentares e 30%, respiratórias — e ambas podem coexistir no mesmo indivíduo.
De acordo com o Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS), do Ministério da Saúde, o número de internações por choque anafilático, uma reação alérgica grave, mais que dobrou no País na última década. Em 2024, foram 1.143 casos, uma alta de 107% quando comparados com os 551 casos registrados em 2015. Levantamento do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), com base em informações da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), indica que, entre 2019 e 2022, o número de consultas com alergistas e imunologistas cresceu 42,1% na rede privada, chegando a 3 milhões de agendamentos ao ano.
Lucila Camargo Lopes de Oliveira, alergologista do Fleury Medicina e Saúde e diretora da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai), explica que as alergias são reações exageradas do sistema de defesa do organismo contra substâncias externas — geralmente proteínas presentes em alimentos, além de ácaros, pelos de animais, veneno de insetos e medicamentos — que, normalmente, não deveriam provocar qualquer resposta do organismo. “No Brasil, as alergias mais prevalentes são as respiratórias, como rinite e asma. Também observamos alta incidência de dermatites atópicas e alergias alimentares, estas últimas com crescimento significativo, especialmente na população infantil”, observa Lucila, que é também professora na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
O aumento na prevalência de alergias alimentares é a segunda onda do que já é considerada uma epidemia; a primeira foi asma e rinite alérgicas. Relatório publicado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) revela que, em 2022, as reações a alimentos atingiam ao menos 10% da população dos países desenvolvidos e urbanizados. O alergista e imunologista Marcelo Bossois, coordenador técnico do projeto Brasil Sem Alergia, observa que, nessas nações, o uso intensivo de aditivos químicos e a agricultura em larga escala expõem a população a uma carga maior de xenobióticos, substâncias químicas estranhas ao organismo dos seres vivos, como agrotóxicos e conservantes.
Lucila avalia que o fato de as taxas de alergias serem maiores em áreas urbanas reforça o papel do ambiente no desenvolvimento dessas condições. A alergologista também chama a atenção para o maior acesso ao diagnóstico. “Países desenvolvidos têm sistemas de saúde mais estruturados”, afirma. O diagnóstico depende fundamentalmente de uma consulta médica minuciosa, pois os sintomas alérgicos frequentemente são comuns a outras doenças. Os testes alérgicos disponíveis, como os cutâneos e a dosagem de imunoglobulina E (IgE) específica, são auxiliares importantes, mas não confirmatórios isoladamente.
“Para alergias alimentares, quando há dúvida diagnóstica, podemos realizar o teste de provocação oral. Esse procedimento, considerado padrão-ouro para confirmação ou exclusão de alergias alimentares, deve ser realizado exclusivamente em ambiente hospitalar adequado, sob rigorosa supervisão médica e apenas quando clinicamente indicado”, detalha.
O aumento dos quadros de alergia, analisa Lucila, está relacionado com a transição de um ambiente mais rural para o urbano, com mais exposição a poluentes atmosféricos, produtos químicos diversos, consumo crescente de alimentos ultraprocessados e uso indiscriminado de antibióticos. Segundo a alergologista, ambientes excessivamente limpos ou produtos que danificam as barreiras intestinal, respiratória e da pele favorecem as alergias. “Se não mudarmos os fatores de risco, a tendência será de aumento”, reforça.
Bossois observa que o maior tempo que as pessoas passam em ambientes fechados é outro ponto de atenção, pois aumenta a exposição a alérgenos concentrados. “A alergia surge quando aumentamos a frequência de exposição”, pontua. O especialista também alerta para o risco dos xenobióticos, como agrotóxicos e conservantes na alimentação, que alteram a estrutura das proteínas e aumentam a propensão para reações do sistema imunológico. “O trigo com agrotóxicos na sua composição, por exemplo, tem uma capacidade muito maior de causar alergia alimentar do que o grão sem agrotóxico”, alerta.
A poluição, acrescenta Bossois, é outro fator agravante, pois modifica os alérgenos, como o pólen, tornando-os mais potentes. “A poluição age diretamente na estrutura proteica do alérgeno, fazendo com que este induza uma reação maior do sistema imunológico, com aumento da produção de anticorpos que causam alergia”, relata.
Junto com a poluição, as mudanças climáticas alteram substancialmente a exposição ambiental a alérgenos, destaca Lucila. Isso porque a bagunça meteorológica prolonga as estações polínicas — períodos com mais presença de pólen no ar —, o que favorece a proliferação de ácaros em locais mais úmidos e provoca a quebra de barreiras protetoras do organismo por meio de poluentes e agentes tóxicos.
Embora existam correntes da medicina que defendam um aspecto psicossomático na manifestação de quadros alérgicos, a alergologista conta que não há evidências científicas robustas que comprovem uma relação causal direta entre transtornos mentais e o desenvolvimento de alergias. “Mas sabemos que alergias crônicas afetam a qualidade de vida e podem contribuir para quadros de ansiedade, enquanto o estresse pode exacerbar sintomas alérgicos. Porém, mais pesquisas são necessárias para estabelecer conexões definitivas”, pondera.
As alergias, em sua maioria, são condições crônicas persistentes cuja abordagem vai além da prescrição de medicamentos. O primeiro passo rumo ao controle da doença é o paciente conhecer a própria alergia e seus gatilhos. Quando necessário, ressalta Lucila, poderá haver a prescrição de medicamentos para o controle dos sintomas, além de abordagens personalizadas para crises agudas. “As novidades incluem imunoterapias mais seguras e eficazes, incluindo a dessensibilização para alergia alimentar, novos medicamentos biológicos para casos graves e individualizações baseadas no perfil de cada paciente”, acrescenta.
Bossois defende a “medicina do estilo de vida”. “Indicamos medidas simples, como evitar tapetes, cortinas e bichos de pelúcia; usar sabão de coco e vinagre para lavar roupas; reduzir o uso de fragrâncias; manter boa saúde mental; e praticar exercícios físicos. Reduzir antibióticos e outros medicamentos também ajuda no controle da condição”, conclui o médico.