A Constituição de 1988 — que ficou conhecida como Constituição Cidadã — define, especificamente no artigo 205, a Educação como um direito de todos e dever do Estado e da família. E, no artigo 208, que detalha as obrigações do Estado para garantir esse direito, a Carta assegura que o ensino é obrigatório e gratuito, oferecido dos 4 aos 17 anos. No entanto, 37 anos depois dessa conquista, milhões de jovens e adultos brasileiros ainda não conseguem concluir essa etapa da escolaridade.
Alguns, mais velhos, são da época em que estudar era um privilégio, e não um direito universal. Outros, mais jovens, mesmo com vagas à disposição, são empurrados para fora da escola pela necessidade de trabalhar, cuidar da família ou até por não verem sentido nos estudos. Juntos, eles somam um contingente de 66,6 milhões de pessoas, um imenso público potencial para a Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Apesar de tamanha demanda potencial, as matrículas na EJA vêm caindo ano após ano desde 2007 — o Brasil passou de 4,9 milhões de matrículas na modalidade para 2,4 milhões, no período. A queda representa um problema para o País, que perde oportunidades de desenvolvimento que dependem da melhor formação da população. É, ainda, um problema para cada um desses cidadãos, que têm menos acesso a direitos, trabalho formal e renda.
A pesquisa Educação de Jovens e Adultos: Acesso, Conclusão e Impactos sobre Empregabilidade e Renda indica que, entre jovens de 19 a 29 anos, concluir a EJA aumenta em 7 pontos porcentuais (p.p.) as chances de conseguir um emprego formal e eleva, em média, a renda mensal do trabalho em 4,5%. Para os que têm até 24 anos, a melhoria é ainda mais relevante: a formalização aumenta para 9,6 p.p., enquanto a renda mensal pode subir 7,5%. A análise é da Fundação Roberto Marinho (FRM) e em parceria com o Itaú Educação e Trabalho a partir de microdados de 2014 a 2022 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua. A metodologia da Pnad Contínua acompanha os mesmos indivíduos durante cinco visitas consecutivas, em um intervalo de três meses entre cada uma. Portanto, os efeitos positivos da EJA foram verificados em pouco mais de um ano.
Segundo Diogo Jamra, gerente de Articulação, Advocacy, Monitoramento e Avaliação do Itaú Educação e Trabalho, os dados reforçam que é urgente fortalecer políticas públicas que integrem a EJA às necessidades desse público, sendo a conexão com a Educação Profissional e Tecnológica (EPT) um dos caminhos para que isso aconteça. “Embora as matrículas na EJA, de forma geral, tenham caído, as que se conjugam com o ensino profissional têm se mantido, o que mostra que o interesse existe”, compara.
Outra ideia que poderia ajudar a estimular a conclusão da educação básica durante a vida adulta seria a oferta de formatos modulares, pois são comuns períodos de evasão e retorno em decorrência das obrigações dos alunos fora da escola. “Uma boa metáfora é que a EJA deveria ser como uma rota de ônibus circular, que vai pegando as pessoas pelo caminho, levando por certo trecho da rota, mas permitindo que suba e desça várias vezes até completar o percurso”, sugere Jamra.
Voltar a estudar tem sido “libertador” para Caroline Alves Marinho, de 35 anos, que largou a escola na adolescência e logo assumiu responsabilidades de trabalho e de cuidados com a família. “Fui seguindo com outras prioridades à frente da escola. Mas a realidade bateu: para ter autonomia, para escolher no que trabalhar, teria que me capacitar”, conta. Ela diz que estudar lhe deixa feliz, mas, para ter tempo de conciliar a escola com as outras demandas, acabou optando por fazer o ensino semipresencial, oferecido pelo Centro Universitário Internacional (Uninter). Agora, ela sonha com o ensino superior. “Ainda estou indecisa entre Pedagogia e Serviço Social, mas sei que vou fazer faculdade”, garante.
Segundo a Uninter, seu público da EJA é majoritariamente feminino, na faixa etária entre 21 e 30 anos e da classe média baixa. De fato, a análise do Itaú Educação e Trabalho mostra que, dentre o imenso contingente que poderia frequentar a EJA, mulheres e desempregados têm as maiores chances de conclusão dos estudos. São pessoas que deixaram os sonhos de lado por um tempo, mas aproveitam momentos de oportunidade para retomá-los. “Formei um filho engenheiro e outro contador — era meu sonho ver os dois formados. Agora eles que estão me apoiando, dando força”, conta, orgulhosa, Adriana Rosa, 48 anos, aluna da EJA. Ela reconhece que nem sempre a escola é fácil depois de tanto tempo afastada, mas está empenhada em seguir. “Termino o ensino médio em dezembro. Depois, quero, e vou, fazer faculdade de Nutrição”, afirma.
Timothy Ireland, professor aposentado na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), que trabalha com EJA desde a década de 1970, defende que é preciso dar mais centralidade às políticas públicas de educação para adultos a fim de tornar a escolarização mais relevante para esse público. Isso passa por oferecer formação adequada para professores e infraestrutura física para os centros onde acontecem as aulas, tudo condizente com a faixa etária.
Ireland explica que a EJA abarca jovens, que têm pressa e querem logo a certificação, assim como pessoas mais velhas, para quem a escolaridade oficial não é o principal. “Lidar com esse público é um desafio que demanda criatividade. Temos de aceitar a diversidade etária também, porque se não conseguirmos conviver entre gerações, estaremos perdidos”, ressalta o professor.
No entanto, na maioria dos casos, os professores não estão preparados para lidar com turmas com esse tipo de diversidade, já que os concursos são abertos de forma genérica, em geral por disciplina, e os docentes acabam alocados nas vagas da EJA sem receberem formação específica. E, em diversos municípios, as salas de aula estão inadequadas, porque são as mesmas preparadas para crianças, mas usadas no turno da noite.
Ireland destaca, ainda, que não se pode deixar de olhar para o problema com um recorte racial, porque 65% do público da EJA é formado por negros e pardos. “Se não reconhecermos que existe uma relação com a cor da pele, não solucionaremos a questão”, adverte. E, de acordo com ele, além de reformar currículo e metodologias da EJA pensando no público real, outro passo indispensável é melhorar a escola para os adolescentes para que eles não evadam e acabem por elevar o contingente daqueles que não concluem os estudos na idade regular. “A escola é chata para o adolescente. Nessa idade, o aluno tem muita energia e é preciso explorá-la, ajudá-lo a criar”, sugere.
Da parte da sociedade, é preciso dar todo o apoio possível para que os jovens estudem na idade certa e, no caso dos adultos, incentivos para que eles possam voltar a estudar. “O patrão precisa ser flexível e ajustar horários, por exemplo. Trabalhei com operários da construção civil em que metade da carga horária da EJA era contada como horário de trabalho. O aluno investia uma parte, a empresa investia outra. É uma forma de reconhecer que a educação é um bem comum indispensável para todos”, conclui o professor.