Artigo

A urgência de compreender os municípios

Marília Ortiz
é doutoranda em Administração Pública e Governo na Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV-EBAPE), docente na pós-graduação em Auditoria e Finanças Públicas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ex-secretária de Fazenda de Niterói (2021–2024).
Ursula Peres
é professora de Gestão de Políticas Públicas na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e ex-secretária-adjunta de Planejamento e Orçamento do município de São Paulo.
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Marília Ortiz
é doutoranda em Administração Pública e Governo na Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV-EBAPE), docente na pós-graduação em Auditoria e Finanças Públicas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ex-secretária de Fazenda de Niterói (2021–2024).
Ursula Peres
é professora de Gestão de Políticas Públicas na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e ex-secretária-adjunta de Planejamento e Orçamento do município de São Paulo.

Reformas de grande impacto raramente emergem de forma espontânea. Em geral, aparecem quando há constrangimentos e insatisfações, sobretudo de natureza fiscal, quando o Estado é levado a rever suas prioridades e redefinir o que considera importante para sua atuação. Esses momentos de inflexão expõem tensões internas do aparato estatal, abrindo espaço para revisitar funções, redefinir prioridades e revisar arranjos institucionais. 

A literatura comparada mostra que diferentes países passaram por processos semelhantes, ainda que motivados por dinâmicas distintas e com resultados diferentes – e aqui não se trata de juízo de valor, mas de colocar a trajetória das discussões sobre o Estado em perspectiva. A busca por eficiência com inspiração no setor privado na New Public Management nos EUA e no Reino Unido; ou ainda a Reforma do Estado no Brasil em 1995, com uma proposta de redefinição do papel do Estado orientada por resultados, seguida pela Lei de Responsabilidade Fiscal de 2000 são exemplos de marcos geracionais de crises e propostas de solução dentro de um campo em disputa pelas diversas ideias. 

Desde então, outras reformas recentes no país, como a Previdenciária e a Tributária, tentam corrigir desequilíbrios estruturais, mas apenas puxaram o freio de mão do ponto de vista fiscal, sem que tenhamos ainda conseguido resolver o enorme conflito distributivo que estrutura a sociedade brasileira. Nesse contexto em que a bola da vez é a Reforma Administrativa, existe a oportunidade de repensar esses parâmetros levando em conta dois elementos. 

Primeiro, a estrutura vertebral do Estado brasileiro: o federalismo em três níveis, com mais de 5.000 entes federativos, sob a grande extensão territorial brasileira. A discussão deve se balizar de modo a fortalecer – e não fragilizar – o pacto federativo: a sedutora ideia de mecanismos fixos esbarram na realidade, que impõe que tratar de forma igual o que é estruturalmente desigual tende a produzir mais distorções do que soluções.

Segundo, e não menos importante: a ideia de que a busca por eficiência deve estar orientada pelos três outros “E”s – eficácia, efetividade e equidade. Desconsiderar a posição central das entregas em termos de serviços e políticas públicas, e sua qualidade, significa trazer uma discussão infrutífera sobre “tamanho do Estado”. E desconsiderar a enorme desigualdade estrutural brasileira impede a construção de um estado realmente justo.

Estudo recente do Centro de Estudos da Metrópole (USP) mostrou que os municípios brasileiros se distribuem em três grandes grupos de diferentes escalas, natureza fiscal e administrativa: enquanto os menores são pequenas localidades com baixa urbanização e dependentes de transferências federais – representando 84% dos municípios -, as metrópoles e centros regionais são menos de 4%, concentrando quase metade da população. Estes dados ilustram a importância de se levar em conta a diversidade territorial e de capacidade administrativa brasileira.

Dentre as 70 propostas resultantes do Grupo de Trabalho realizado na Câmara dos Deputados neste ano, é possível destacar exemplos positivos e negativos em relação a essa dinâmica.

No campo da organização administrativa, o projeto propõe um teto progressivo para o número de secretarias municipais cuja despesa de custeio supera a receita própria: até cinco pastas em cidades com até 10 mil habitantes e, no máximo, dez secretarias em municípios com mais de 500 mil moradores. Outra medida, voltada à gestão de pessoas, busca limitar cargos em comissão e funções de confiança, fixando um teto de até 5% do total de servidores — ou 10% em municípios pequenos, mediante justificativa — e exigindo que pelo menos metade desses cargos seja ocupada por servidores efetivos.

As duas propostas trazem um equívoco recorrente: uniformizam regras para territórios profundamente diversos. Ao estabelecer limites rígidos para secretarias e para cargos em comissão com base na situação fiscal e no tamanho populacional, o projeto desconsidera a heterogeneidade estrutural dos municípios brasileiros. Há cidades pequenas ou de médio porte que exercem funções regionais complexas e que, por isso, demandam arranjos administrativos mais robustos do que seu porte sugeriria.

Essa padronização fere a autonomia federativa, reduz a capacidade de auto-organização dos governos locais e pode comprometer a entrega de políticas públicas, sem garantir economias reais ou ganhos de eficiência. Em vez de fortalecer a gestão, cria-se um desenho rígido que não dialoga nem com o pacto federativo, nem com a diversidade de contextos municipais.

Por outro lado, há dois exemplos que demandam ajustes, mas vão no caminho certo: a vedação aos privilégios que oportunizam supersalários no serviço público e a transparência na gestão de pessoas.

Em relação ao primeiro tema, 19 das 70 propostas apresentadas compõem o Eixo 4 – Extinção de Privilégios. A partir de amplo diagnóstico com dados e evidências construídos pela sociedade civil e extensamente reproduzidos na imprensa, as medidas trazem um sinal de compromisso com o combate às desigualdades dentro do serviço público, resgatando a eficácia do limite remuneratório constitucional.

Também é válido destacar a proposta de ampliação da transparência na gestão de pessoas: o texto prevê a criação de um sistema nacional de informações sobre vínculos e contratações públicas, condição básica para que haja decisões baseadas em dados. Trata-se de avanço importante: hoje, a opacidade, despadronização e desintegração dessas informações impede que o país conheça a real composição de sua força de trabalho. Segundo a RAIS (2022), 62% dos servidores públicos estão nos municípios, o que torna ainda mais urgente a construção de um retrato integrado sobre quem trabalha, onde e sob quais regras. Além disso, desconhecemos os gastos com pessoal terceirizado e das organizações sociais que prestam serviços aos entes. Reunir essas informações permitirá construir um diagnóstico consistente sobre a força de trabalho responsável pela prestação de serviços públicos no país.

É fundamental lembrar que reformas administrativas não se resolvem de um dia para o outro: são processos incrementais, gradativos e cumulativos que exigem capacidade de implementação. Em um país marcado por profundas desigualdades federativas, é preciso investir em diálogo e cooperação entre os entes, visando o desenvolvimento de capacidades locais. Desta forma, a reforma pode avançar como um projeto de fortalecimento institucional e melhoria concreta da entrega de políticas públicas.

Este conteúdo é fruto de uma parceria editorial com o Movimento Pessoas à Frente — uma organização suprapartidária e plural, composta por mais de 200 pessoas com diferentes perspectivas políticas, sociais e econômicas, comprometidas com o aprimoramento das políticas de gestão de pessoas no setor público.

Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.