A necessidade de uma Reforma Administrativa é um debate que há muito tempo ocorre no Brasil. Desde 1938, o País vem realizando reformas no setor público, porém sempre de forma parcial. A última iniciativa nesse sentido ocorreu em 1995. Desde então, esse é um assunto constantemente abordado, em especial por haver a necessidade de o País buscar mais eficiência na prestação de serviços e no controle dos gastos públicos, além de precisar modernizar a gestão pública. Neste ano, o tema finalmente evoluiu.
O Grupo de Trabalho (GT) criado pela Câmara dos Deputados para discutir a proposta da Reforma Administrativa apresentou sugestões ao presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos/PB), no início de julho. No entanto, conforme adiantou o coordenador do GT, o deputado federal Pedro Paulo (PSD/RJ), um dos temas mais urgentes e aguardados pela sociedade civil não consta, ao menos neste momento, no texto apresentado: os supersalários do setor público — isto é, os valores recebidos por uma pequena parte dos servidores públicos acima do teto constitucional, atualmente, de R$ 46,3 mil.
As recentes e reiteradas notícias e casos de supersalários no serviço público brasileiro demonstram, com dados contundentes e diagnósticos bastante completos, a forma pela qual o teto remuneratório constitucional vem sendo desrespeitado por meio de auxílios indevidamente classificados como indenizatórios. Um dos exemplos é a licença compensatória, que presenteia magistrados e procuradores com um dia de folga a cada três trabalhados. Na prática, trata-se de um aumento de um terço de salário sem Imposto de Renda (IR), já que a folga não é tirada, mas recebida em dinheiro como indenização. Em 2024, esse auxílio fora do teto custou, só para os magistrados, mais de R$ 1,2 bilhão aos cofres públicos, de acordo com dados da plataforma DadosJusBr, da Transparência Brasil.
Esse fenômeno reforça ser necessário o debate sobre a gestão do orçamento público nos órgãos que dão vazão aos supersalários, principalmente diante de um cenário no qual a preocupação fiscal leva, inclusive, a intervenções indevidas na discussão acerca da Reforma Administrativa e ameaça de cortes em políticas de Saúde e Educação. Mais de R$ 11 bilhões em pagamentos acima do teto — esse foi o valor calculado, em 2023, para magistrados e Ministério Público (MP), conforme a pesquisa Além do teto: análise e contribuições para o fim dos supersalários, realizada pelo pesquisador Bruno Carazza para o Movimento Pessoas à Frente.
A título de comparação, seria possível construir, com esse mesmo valor, 4.582 Unidades Básicas de Saúde (UBSs), atender 1,36 milhão de famílias a mais no Bolsa Família ou beneficiar 3,9 milhões de alunos no Programa Pé-de-Meia. Ainda segundo esse estudo, dentre os principais gastos em 2023, a indenização de férias não gozadas para a magistratura custou R$ 1 bilhão aos cofres públicos, enquanto para o MP esse valor foi de R$ 464,2 milhões.
Em primeiro lugar, é oportuno lembrar que o Artigo 99 da Constituição Federal é claro ao assegurar autonomias administrativa e financeira para o Judiciário gerenciar os próprios recursos. Autonomia, porém, não significa imunidade ao ordenamento jurídico, como bem coloca o ministro Sepúlveda Pertence, na relatoria da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 691, em 1992: “A administração financeira do Judiciário não está imune ao controle, na forma da Constituição, da legalidade dos dispêndios dos recursos públicos; sujeita-se, não apenas à fiscalização do Tribunal de Contas e do Legislativo, mas também às vias judiciais de prevenção e repressão de abusos, abertas não só aos governantes, mas a qualquer do povo, incluídas as que dão acesso à jurisdição do Supremo Tribunal”.
Um grande exemplo, além do próprio teto constitucional, é a obrigação de respeito à Lei de Responsabilidade Fiscal. A plataforma Justa, na pesquisa nacional Justiça e orçamento nos Estados, identificou que, dos 18 Estados analisados, metade ultrapassou, em 2023, os 2% determinados como limite de gastos orçamentários com os MPs. Além disso, 16 Estados ultrapassaram os 6% determinados para o Judiciário.
Adicionalmente, o estudo aponta R$ 3,8 bilhões de créditos adicionais recebidos pelas instituições de justiça estaduais no mesmo ano, dos quais R$ 3,3 bilhões foram destinados à folha de pagamento. A grande questão que joga luz sobre esses dados não é o gasto com pessoal — visto que a valorização dos servidores e funcionários, por exemplo, é essencial para o cumprimento das atividades judiciais —, mas a alta disparidade de salários de magistrados e membros do sistema de Justiça, somada à falta de uma política remuneratória mais coesa e condizente com planejamento e dimensionamento da força de trabalho.
O conjunto da obra é opacidade, inadequação e privilégios, o qual alimenta a desconfiança com o Estado: 83% da sociedade é favorável a uma regulamentação efetiva para evitar os pagamentos acima do teto constitucional no setor público, segundo pesquisa Datafolha encomendada pelo Movimento Pessoas à Frente, em 2025. Por outro lado, um em cada quatro brasileiros acredita que todos os funcionários públicos, ou a maioria, recebem acima do teto constitucional, de acordo com um estudo Datafolha de 2023, quando a realidade é que metade deles recebe até R$ 5 mil, segundo a Relação Anual de Informações Sociais (Rais) de 2022.
Diante desse contexto, combater a crise de legitimidade das instituições democráticas passa por resgatar a autoridade do teto constitucional, por meio dos controles que a própria Constituição prevê. O primeiro grande passo para transformar esse quadro é aprovar uma legislação que defina, de maneira definitiva, o que é de fato indenizatório, sem margens para o uso inadequado a fim de majorar remunerações. E não há momento mais adequado para aprovar essa legislação do que agora, enquanto a Reforma Administrativa é discutida. É essencial que os supersalários não sejam excluídos. Não podemos deixar essa discussão para depois.
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